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Estado, democracia e tecnologia: conflitos políticos e vulnerabilidade no contexto do big-data, das fake news e das shitstorms

Estado, democracia e tecnologia: conflitos políticos e vulnerabilidade no contexto do big-data, das fake news e das shitstorms 150 150 Camilo Onoda Caldas e Pedro Neris Caldas

Resumo: O presente artigo trata dos impactos que as novas tecnologias e alguns de seus potenciais fenômenos correspondentes (big-data, shitstorm, candystorm e fake news) têm sobre os processos eleitorais e, consequentemente, o modelo democrático existente na atualidade. O texto resulta de um estudo interdisciplinar, abrangendo um quadro teórico ligado a ciências como comunicação, tecnologia, direito e política. O objetivo é descrever os fenômenos do big-data, shitstorm, candystorm e fake news, a partir da literatura acadêmica existente, e indicar como todos eles têm uma relevância crescente no desenvolvimento dos processos eleitorais contemporâneos, criando a necessidade de novas iniciativas por parte do Poder Executivo, Legislativo e Judiciário, para evitar consequências deletérias capazes de afetar o equilíbrio das disputas eleitorais e a democracia como um todo.

Palavras-chave: Estado; Conflito; Tecnologia; Shitstorm; Big-data.

CALDAS, C. O. L.; CALDAS, P. N. L.. Estado, democracia e tecnologia: conflitos políticos e vulnerabilidade no contexto do big-data, das fake news e das shitstorms. Perspectivas em Ciência da Informação, v. 24, n. 2, p. 196–220, abr. 2019.

Alguns apontamentos sobre a sociologia do negro no Brasil

Alguns apontamentos sobre a sociologia do negro no Brasil 150 150 Renato Aparecido Gomes

Com o fim do sistema escravista em 1888 e a proclamação da república em 1891, uma questão até então não crucial, apareceu e teve de ser resolvida: era necessária a construção de uma nação, sendo imperioso indagar: como transformar os ex-escravos negros em elementos constituintes da nacionalidade e da identidade brasileira? Dentre as dificuldades relativas à inserção dos negros neste contexto, estaria o fato da “estrutura mental” herdada do longo período de escravidão do negro africano, fazer o cidadão brasileiro branco considerar o negro ou seus descendentes apenas como coisa, como objeto, como força ”animal” de trabalho.

Durante quase quatrocentos anos o negro foi objeto útil de compra e venda, sujeito à hipoteca. Conforme classificação de Teixeira de Freitas, Consolidação das Leis Civis (1858), os escravos pertenciam à classe dos bens móveis, ao lado dos semoventes. (PRUDENTE, 1988, p.137)

A pluralidade racial nascida do processo colonial representava, para a elite branca, uma ameaça e um grande obstáculo à construção de uma nação que se pensava branca. Daí porque a raça tornou-se o eixo do grande debate nacional que se travava a partir do final do século XIX e que repercutiu até meados do século XX.

Após a política do branqueamento, para impedir, ou pelo menos minimizar a ocorrência de conflitos raciais motivados pela exclusão total dos negros ex-escravos e seus descendentes, buscou-se a construção de uma identidade nacional do brasileiro, cujo objeto ideal e pretendido era a mestiçagem. Em nome da construção dessa identidade nacional, que visava a construção de um sentimento de nação entre todos os brasileiros, os negros tiveram usurpados elementos de sua tradição enquanto grupo, que acabaram sendo transformados em elementos nacionais, vale dizer, foram generalizados.

Culinária, música e esporte são algumas das áreas em que elementos de grupo, forjados nas senzalas pelas diversas nações de negros submetidos ao mesmo jugo infeliz, foram tomados e transformados em nacionais.

Tal qual a política de branqueamento, a construção da identidade nacional acabou favorecendo o estabelecimento de duas conseqüências: 1) de um lado, impediu a formação de um grupo unificado e coeso de negros que pudesse pleitear o seu lugar na sociedade; 2) de outro lado, ao generalizar os elementos de grupo, tornando-os elementos próprios da mestiçagem, embranqueceu-os. O resultado dessa política foi que o negro, paulatinamente, foi perdendo sua identidade enquanto grupo e, por via de conseqüência, sua identidade individual ao mesmo tempo em que assimilava os elementos da cultura branca européia.

A identidade, segundo HALL (2001, p. 256), resulta da interação entre indivíduo e sociedade, de modo que ao mesmo tempo em que o universo pessoal do indivíduo é projetado na sociedade, ele internaliza os “significados e valores” que a sociedade lhe oferece. Desse modo, o indivíduo constrói seu modo de agir e de se relacionar com sua comunidade. Esse processo é iniciado a partir dos conhecimentos adquiridos durante a trajetória pessoal de vida de cada indivíduo e vai se constituindo na relação entre indivíduo e coletividade. A identidade coletiva permite aos grupos diferenciar-se dos demais, intermediando os relacionamentos internos, entre os membros do próprio grupo, e externos, quanto ao relacionamento com outros grupos.

CASTELLS (1999, p. 24), por sua vez, esclarece que são as relações de poder que determinam a construção social da identidade. Com base nisso ele define três tipos de identidades: a) a identidade legitimadora, em que as instituições exercem seu domínio em relação aos “atores sociais”; b) a identidade de resistência, desenvolvida por grupos excluídos, desvalorizados pelos grupos dominantes, e que teria por objetivo criar estratégias de sobrevivência na sociedade excludente, a partir de “valores distintos ou mesmo opostos aos que permeiam as instituições da sociedade”; e, c) a identidade de projeto, em que os indivíduos ou grupos excluídos, buscam a redefinição de sua posição social, através da redefinição de sua identidade, utilizando-se para isso dos materiais culturais a que tem acesso. Essa redefinição social seria ainda, geradora de transformações sociais(O poder da Identidade é o segundo de três volumes da obra A Era da informação: Economia, Sociedade e Cultura de Manuel Castells, onde o autor espanhol trata a identidade como uma das tendências que moldam o mundo de hoje. A partir da análise de movimentos sociais como o feminismo, o movimento gay e de movimentos conservadores como o nacionalismo e o fundamentalismo religioso, CASTELLS discute a “crise do Estado-Nação”, que teria sido gerada pelo conflito entre as identidades coletivas advindas desses movimentos e as “forças tecno-econômicas”. Segundo o autor, a transformação do capitalismo e o fim do estatismo teriam sido os responsáveis pela explosão de identidades coletivas no século XX).

CASTELLS (1999, p. 24), considera, ainda, que a “identidade de resistência” talvez seja a mais importante dos três tipos, por permitir o agrupamento dos indivíduos excluídos em torno de um ou de diversos “elementos identificadores”, o que possibilita ao grupo, lutar contra as possíveis desigualdades e injustiças sofridas.

Não é por outro motivo que neste período (primeira metade do século XX) o movimento negro, nos grandes centros urbanizados do Brasil, apregoava a inclusão do negro na sociedade por meio da assimilação, pelos negros, de todas as características impostas pela sociedade branca e capitalista. Buscava-se construir uma “imagem positiva” dos negros através da incorporação de elementos da cultura oficial, visando contrariar as teorias cientificistas do século XIX, que afirmavam ser o negro era inferior por ser incapaz de se civilizar. Para o combate a essas afirmações e luta pela sua inserção na sociedade, o negro, organizado como movimento, e com apoio de uma “imprensa negra”, adotou como bandeira civilizar o povo negro especialmente em relação aos padrões e estruturas próprias do capitalismo. A assimilação desses padrões se fez sentir em diversos espaços sociais, desde a família até a educação e o trabalho, ou ainda, da construção de sentimento de amor à pátria. Particularmente, a educação foi considerada o principal veículo para a realização da assimilação, pelo negro, da cultura branca. A idéia recorrente foi a de que a educação era o principal meio através do qual o negro venceria a discriminação e a marginalização.

A política e a ideologia do branqueamento exerceram uma pressão psicológica muito forte sobre os africanos e seus descendentes. Foram, pela coação, forçados a alienar sua identidade transformando-se cultural e fisicamente em brancos. MUNANGA (2004, p. 103)

Às políticas públicas do branqueamento e da formação da identidade nacional, agregou-se a idéia da democracia racial no Brasil. Segundo esse pensamento, o Brasil, por ter sido constituído pela conjunção das três raças básicas que formaram o seu povo: branco, índio e negro; teria conseguido construir uma democracia racial na sociedade, razão pela qual, essas raças conviviam pacificamente.

Essas idéias apenas colaboraram para mascarar o preconceito racial existente na sociedade brasileira, em especial aquele praticado pela elite branca. A execução de sua concepção ofereceu a um número, pequeno, de negros a possibilidade de integração na sociedade oficial, desde que via seu embranquecimento (Por embranquecimento estamos considerando o conjunto de políticas que buscaram evitar a formação de um ideário negro, dentre as quais se destacam as políticas do branqueamento e da construção da identidade nacional, além do mito da democracia racial).  Objetivava-se com isso, perpetuar o mito e, por conseqüência, amainar os ânimos da comunidade negra mais preparada, seja intelectualmente, seja financeiramente.

(…) a ascensão de elementos de cor ou pressupõe ou se faz acompanhar do cruzamento com elementos brancos, seja qual for a origem deles. (…) Em conseqüência, cada conquista do negro ou mulato que logra vencer econômica, profissional ou intelectualmente tende a ser absorvida, em uma ou duas gerações, pelo grupo branco, através do branqueamento progressivo e da progressiva incorporação dos descendentes a esse grupo. (NOGUEIRA, 1985, p. 238)

Esse branqueamento, cuja passagem do “considerar-se negro” para o “considerar-se branco” (passing), no Brasil é mais fácil que nos EUA (Nos EUA o negro é todo aquele que tem sangue negro, ainda que tenha pele branca em vista do princípio one drop rule. O preconceito, portanto, é de origem. No Brasil, invariavelmente, considera-se negro quem carrega efetivamente a cor escura na pele. Exatamente por isso é que, no Brasil, não importa se o sangue é negro. O negro clarinho, o mulatinho, muito facilmente é aceito e considerado como branco, bastando, em muitos casos, que ele próprio se proclame branco. São os casos de Machado de Assis, José de Alencar e mesmo recentemente, do jogador de futebol Ronaldo Fenômeno, que emitiu declaração neste sentido em entrevista a um jornal esportivo), v.g., dificulta a percepção de identidade coletiva entre os negros, em especial nas suas bases populares, sem o qual uma verdadeira consciência de luta torna-se quase impraticável.

Neste ponto é importante destacar que o preconceito racial no Brasil é de marca, como bem aponta NOGUEIRA (1985, p.78/79):

Considera-se como preconceito racial uma disposição (ou atitude) desfavorável, culturalmente condicionada, em relação aos membros de uma população, aos quais se têm como estigmatizados, seja devido à aparência, seja devido a toda ou parte de ascendência étnica que se lhes atribui ou reconhece. Quando o preconceito de raça se exerce em relação à aparência, isto é, quando toma por pretexto para as suas manifestações os traços físicos do indivíduo, a fisionomia, os gestos, o sotaque, diz-se que é de marca; quando basta a suposição de que o indivíduo descende de certo grupo étnico para que sofra as conseqüências do preconceito, diz-se que é de origem.

Daí que a permissibilidade da integração do mulato na sociedade formal branca acabou por facilitar as pretensões da ideologia (Por ideologia, partilhamos das observações feitas por CHAUÍ (2003, p. 08): “(…) a ideologia é um ideário histórico, social e político que oculta a realidade, (…) esse ocultamento é forma de assegurar e manter a exploração econômica, a desigualdade social e a dominação política.”) de inferiorização da população negra, ainda que a maioria dos negros e seus descendentes continuassem a viver em condições de pobreza alarmantes, e sob condições de racismo tão eficientes quanto veladas.

A eficiência deste argumento ideológico é tão grande que a tarefa de combate a essa política de branqueamento físico e cultural exige luta árdua, em vista dos seus ideais terem permanecido intactos no inconsciente coletivo brasileiro. Constata MUNANGA (2004, p. 103) que, esse ideal acaba por prejudicar “qualquer busca de identidade baseada na “negritude” e na “mestiçagem”, já que todos sonham ingressar um dia na identidade branca, por julgarem superior”.

Diversos, portanto, foram os argumentos (artifícios) que compuseram a ideologia de justificação e afirmação da inferioridade do negro, e por via de conseqüência de afirmação da superioridade do branco. Apenas para não deixamos de citar, destaquemos, pela sua dimensão, a posição da Igreja Católica que, segundo VALENTE (1994, p. 30), propagava a crença de que os negros, descendentes de Cam, já eram escravos na própria África e, ademais, estariam sujeitos aos costumes mais bárbaros e inúmeras superstições, fazendo-se necessário levar até eles, “a palavra salvadora do evangelho”. Este não era o único argumento sagrado. Alguns defendiam que os negros eram descendentes diretos de de Caim, amaldiçoado por ter matado Abel (alías, o primeiro assassino da história!), e exatamente por isso, condenados por Deus a eternamente carregar o sinal da sua maldição, o que no caso, teria sido a cor escura da pele. Como maldito, merecia a escravidão.

Outros argumentos também cuidaram de propagar a pretendida ideologia de inferiorização dos povos negros africanos e também dos índios, é bom lembrar, como a de que os negros eram bárbaros, não civilizados (segundo os modos europeus). Até metade do século XX, muitos estudiosos defendiam que os negros somente foram escravizados porque não resistiram à sua escravização pelo branco europeu, como resistiu, por exemplo, o índio encontrado no território brasileiro. Segundo tais estudiosos os negros eram mais “mansos e pacíficos”.

Esse conjunto de idéias (ideologia), contudo, não escondia e não esconde o verdadeiro motivo de toda a campanha de inferiorização do negro. O que ela buscava formar era ambiente suficientemente capaz de, como observou FERNANDES (1955, p 11), justificar o trabalho escravo, base do modo de produção implantado no Brasil Colônia, e cujos reflexos se fez sentir nos períodos posteriores da história brasileira.

Os intelectuais brasileiros também contribuíram para a consolidação e justificação do preconceito de cor velado. MOURA (1990, p. 213) destaca que os primeiros intelectuais que trataram da questão do negro, apesar das diferenças de posicionamentos entre eles, concordavam em uma coisa: a visão de que os negros, assim como os índios e mestiços em geral, seriam elementos bárbaros pagãos, gentios sem capacidade civilizadora, ao passo que os brancos, aqueles mesmos detentores das estruturas de poder, seriam os elementos que impulsionaram a nossa sociedade à efetiva civilização.

Eis já aí o caráter eminentemente racista e ideológico reproduzido pela intelligentsia nacional. Segundo tais estudiosos, os negros não tinham condições de dirigir a sociedade e, seja pela determinação divina, seja por outra razão mais agnóstica, eles estariam condenados a servirem como massa domada e dominada pelos brancos, únicos detentores do poder e dos privilégios raciais tanto do mundo real e como do mundo sagrado.

Tais pensadores tinham sido contaminados pelas teorias evolucionistas, ditas científicas, que procuravam demonstrar que o negro fora escravizado e dominado na África por razões de ordem biológica, vale dizer, por se encontrarem no último degrau da escala da evolução, razão pela qual, o seu cérebro assim como seu equipamento psicológico e moral, não possuía condições de acompanhar o processo civilizatório. Todo esse conjunto de idéias era alimentado pelo mesmo senhor: o capitalismo em expansão.

Para justificar essa fase do capitalismo, a antropologia colonialista, que adquirira status de ciência, justificou cientificamente o que antes era justificado “apenas” pela bíblia, ou mesmo por razões morais ou competições locais. Essa ciência possibilitou a racionalização do racismo transferindo o enfoque do discurso, que até então habitava apenas um campo entre “fundamentos” teológicos ou “opiniões” empíricas, para o campo ideológico da hierarquização das raças.

Segundo essa nova concepção ideológica, a discriminação racial, materializada na identificação do negro como inferior, assim como os demais povos não-europeus, “fundamentava-se” nas razões biológicas que permitiram a classificação das populações do mundo, segundo uma lógica pensada como universal. Daí porque essa superioridade racial autorizaria as atrocidades cometidas pelos nazistas, além de também autorizar o expansionismo econômico e cultural de alguns povos que se julgam superiores aos demais, quaisquer que sejam as razões que usem para fundamentar esse entendimento, sejam puramente messiânicas, sejam imperialistas.

Essa ideologia, como destaca MOURA (1990, p. 214), tem por função “dar respaldo a projetos de exploração de um povo militarmente mais forte sobre outro mais fraco”, de forma que uma das funções do racismo moderno, na nossa contemporaneidade, é racionalizar a permanência do capitalismo, bem como sua expansão sobre outros povos.

No Brasil, em especial, essa ideologia serviu e serve ainda para discriminar, vale dizer, encontrar diferenças para, a partir daí hierarquizar os grupos sociais segundo um grau arbitrariamente atribuído de inferioridade ou superioridade, e impedir que as raças classificadas como inferiores, como o negro, pudessem transpor as fronteiras sociais. Serviu, desse modo, para transformar a sociedade brasileira numa sociedade estruturada segundo uma ordem estamental, onde a mobilidade social do negro é muito difícil e, quando realizada, se faz por conta da atuação do negro como integrante de alguma estrutura criada para entretenimento do branco – caso mobilidade social proporciona aos negros por conta de sua atuação como artistas ou esportistas.

Os estudos sobre o negro brasileiro, nos seus diversos aspectos, têm sido mediados por preconceitos acadêmicos, de um lado, comprometidos com uma pretensa imparcialidade científica e, de outro, por uma ideologia racista racionalizada, que representa os resíduos da superestrutura escravista, e, ao mesmo tempo, sua continuação, na dinâmica ideológica da sociedade competitiva que a sucedeu. Queremos dizer, com isso, que houve uma reformulação dos mitos raciais reflexos do escravismo, no contexto da sociedade de capitalismo dependente que a sucedeu, reformulação que alimentou as classes dominantes do combustível ideológico capaz de justificar no peneiramento econômico-social, racial e cultural a que ele está submetido atualmente no Brasil através de uma série de mecanismos discriminadores que se sucedem na biografia de cada negro. MOURA (1988, p. 17).

No referido estudo, MOURA (1988, p. 18) constata, ainda, que os primeiros pensadores brasileiros que se dedicaram à questão do negro acabaram mais por colaborar com o pensamento racista imbricado no subconsciente coletivo, que para condenar o racismo ou mesmo transformar a realidade social brasileira. Após análise de diversos autores (Perdigão Malheiro, Nina Rodrigues, Arthur Ramos, Gilberto Freyre e Oliveira Vianna), constatou que os estudos realizados pelos dois primeiros, se alinhavam com as concepções européias do evolucionismo para considerar que o negro era a causa do atraso do Brasil. Os dois seguintes tentaram elaborar uma interpretação social da questão do negro, devendo ser destacada a interpretação realizada por Gilberto Freyre através da categorização de Casa Grande e Senzala, ambientes em que as relações entre brancos e negros eram travadas por “senhores bondosos e escravos submissos”. Já Oliveira Vianna, era mais radical. Defendia que o esclarecimento das oligarquias nacionais somente ocorreria na medida de sua arianização. Todos tentaram através de seus estudos justificar o atraso social brasileiro, acenando como causa principal dessa desgraça, a existência de um contingente bastante grande de negros no país.

MOURA (1988, p. 25/29) evidencia que até a literatura desse tempo acabou por veicular o racismo arraigado da sociedade brasileira. Do romantismo ao modernismo, os autores sempre apresentaram as personagens negras como anti- herói, criminoso, subalterno e obediente “quase que ao nível de animal conduzido por reflexos” (MOURA, 1988, p. 26). Até mesmo Euclides da Cunha, a exemplo de Silvio Romero, teria sido contaminado pela ideologia do seu tempo, categorizando os negros e mestiços como inferiores. No período, a única exceção ficou por conta de Castro Alves, que humanizou o negro, retirando-lhe a pecha de besta de carga, ou indolente criminoso. Mas, com exceção de Castro Alves, somente a partir de Lima Barreto o negro readquire sua dignidade como personagem ficcional, como ser humano na sua individualidade. Após Lima Barreto, somente a partir de 1930 é que o negro volta a aparecer na literatura, sem ser retratado como besta-exótica sem sentimentos. Exceção seja feita de Macunaíma, de Mário de Andrade. As obras que voltaram a tratar o negro como ser humano foram: Moleque Ricardo, de José Lins do Rego, e Jubiabá, de Jorge Amado, ainda que nelas o negro apareça como uma “roupagem folclorizada”.

O preconceito racial e a discriminação daí decorrente é evidente neste período compreendido entre a segunda metade do século XIX e o início da primeira metade do século XX. Somente após a segunda guerra mundial é que esse conjunto ideológico de justificação da suposta inferioridade do negro começa a ser desmantelado no Brasil. Com o financiamento, pela UNESCO, de pesquisas sobre a democracia racial a que, supostamente, o Brasil teria alcançado, a desigualdade social e exclusão da população negra discriminada, acabou por ser escancarada. MOURA (1988, p. 31) esclarece que, foram os estudos de Florestan Fernandes e Roger Bastide, na cidade de São Paulo, assim como os de Costa Pinto, no Rio de Janeiro, e de Thales de Azevedo, na Bahia, que provocaram uma reordenação teórica e metodológica por parte dos cientistas sociais brasileiros relativamente à questão do negro. Dentre os principais estudiosos que participaram dessa reordenação, estavam Florestan Fernandes, Octávio Ianni, Emília Viotti da Costa, L.

A. Costa Pinto, Clovis Moura, Jacob Gorender, Lana Lage da Gama Lima, Luís Luna, Décio Freitas, Oracy Nogueira, Joel Rufino dos Santos, Carlos Hasembalg, entre outros. Todos eles empreenderam estudos buscando uma revisão tanto do passado escravista, como também do presente racial, social e cultural das populações negras do Brasil.

Ainda que esses autores brasileiros tivessem discordado sobre alguns pontos, havendo até o alinhamento de dois grupos de pensamentos: as escolas paulista e bahiana de sociologia, todos eles partiram para uma revisão dos conceitos relacionados à realidade racial brasileira. Apenas para não deixar de citar, cumpre destacar que a distinção entre as escolas paulista e bahiana, estava no fato de que os paulistas, “liderados” por Florestan Fernandes, consideravam o problema do negro sempre atrelado ao preconceito de cor existente na sociedade, enquanto os bahianos, dentre os quais merecem destaque Nina Rodrigues e Guerreiro Ramos, considerava que os problemas vivenciados pelos negros estavam mais ligados à sua pobreza do que efetivamente ao preconceito racial.

A esse respeito, GUIMARÃES (1999, p. 94/95) realiza os seguintes apontamentos:

Num dos pólos do debate, esteve a concepção de sociedade multirracial de classes, de Pierson; no outro pólo, esteve a interpretação de Fernandes, de permanência de uma ordem estamental na sociedade burguesa brasileira, a que ele se referiu como “persistência do passado” ou, em outros momentos, como “metamorfoses do escravo”. Donald Pierson, apesar de pesquisador meticuloso, que emprestava mais valor à descrição que à hipótese, foi sem dúvida um dos que se prendeu, de modo mais radical, a certos conceitos teóricos. Suas concepções de “classe” e de “preconceito racial” permaneceram imutáveis durante toda a sua militância disciplinar no Brasil. Assim como sua negativa em considerar como preconceito racial a discriminação sofrida pelos negros, ou como grupo racial o movimento político negro. Fizeram companhia a Pierson na negação do preconceito e das raças no Brasil, Charles Wagley, Marvin Harris e, mais tarde, Pierre van den Berghe (1994). Costa Pinto, Bastide e Florestan, além de Oracy, afirmaram sempre o preconceito brasileiro. Thales de Azevedo sedimentou essa opinião ainda nos anos 50, modificando substancialmente a compreensão que tinha, de início, das relações raciais no Brasil.

A partir da revisão de tais conceitos é que o problema do negro começou a ser desmascarado, sendo apresentado na sua crueza. Contudo, atingiu e continua atingindo apenas uma parte da academia.

É de se notar que referido movimento de revisão partiu de ciências sociais como história, sociologia, antropologia, e até se fez presente na biologia que reviu as teorias evolucionistas racistas do fim do século XIX e início do século XX. Mas tais revisões pararam por aí, não atingiram outras disciplinas acadêmicas, como o Direito, por exemplo.

BIBLIOGRAFIA

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FERNANDES, Florestan. Do Escravo ao Cidadão in Relações Raciais entre Negros e Brancos em São Paulo. São Paulo: Anhembi, 1955.

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           . A integração do negro na sociedade de classes. São Paulo : Editora Ática, 1978.

           . (coord). Habermas. São Paulo : Editora Ática, 1993.

           . (Org). Lenin. São Paulo : Editora Ática, 1978.

           . Circuito Fechado. São Paulo: Hucitec, 1977.

HALL, Stuart. Identidade Cultural na pós modernidade. Rio de Janeiro: DP & A, 2001.

MASCARO, Alysson Leandro. Crítica da Legalidade e do Direito Brasileiro. São Paulo: Quartier Latin, 2004.

           . Filosofia do Direito e Filosofia Politica: A Justiça é Possível. São Paulo: Atlas, 2003.

MOURA, Clovis. As Injustiças de Clio. Belo Horizonte: Oficina de Livros, 1990.

           . Sociologia do Negro Brasileiro.São Paulo: Ática, 1988.

MUNANGA, Kabengele. Estratégias e Políticas de Combate a Discriminação Racial. São Paulo: Edusp, 1996.

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NOGUEIRA, Oracy. Negro Político, Político Negro. São Paulo: Edusp, 1992.

PRUDENTE, Eunice Aparecida de Jesus. Experiências Integradoras que o Brasil já conheceu: Uma análise jurídica sobre a exclusão social dos afro-descentes numa ordem constitucional integradora. São Paulo: NUPES, 2003.

           . O Negro na Ordem Jurídica Brasileira in: Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, Vol. 83, pág. 135-149, jan-dez-1988.

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SCHWARCZ, Lilia Moritz. O Espetáculo das Raças: Cientistas, Instituições e Questão Racial no Brasil 1870-1930. 1ª Edição. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

           . Retrato em branco e negro. São Paulo, Cia. Das Letras, 1987.

Racismo, desigualdade e ações afirmativas no Brasil

Racismo, desigualdade e ações afirmativas no Brasil 150 150 Renato Aparecido Gomes

A igualdade perante a lei, concebida no contexto das revoluções americana e francesa, como forma de abolição dos privilégios dos nobres em relação à burguesia emergente, exatamente porque objetivou, essencialmente, suportar a idéia de uma neutralidade da ação do Estado em relação aos seus súditos, revelou-se, inversamente ao que se propugnava, como promotora das desigualdades sociais, notadamente, daquelas acirradas pela discriminação e preconceito raciais

Sejam quais forem essas desigualdades, de ordem econômica, cultural ou meramente social, sejam ainda materializadas por qualquer forma de discriminação, em razão da origem, das diferenças fenotípicas, de gênero, ou mesmo em razão da opção sexual etc, é imprescindível que seja assegurado a todos os cidadãos, sem qualquer distinção, a igualdade não somente de oportunidades de participação na sociedade, mas também e principalmente de condições na luta pela ocupação do seu espaço social.

A luta pela efetivação dessa igualdade passa pelo reconhecimento, por parte do Estado, primeiro da condição de hipossuficiencia de determinados grupos sociais em relação a outros grupos, privilegiados historicamente pelas estruturas sociais e instituições públicas sob seu domínio; e, segundo, pela necessidade de buscar-se a superação dessa diferença encontrada, através de medidas que elevem esses grupos inferiorizados a uma condição verdadeiramente emancipatória, traduzida pelo equilíbrio real das relações sociais.

Neste cenário, a discriminação e, em especial, a discriminação racial dirigida aos negros e seus descendentes, deve ser combatida não somente através de políticas normativas que se ocupem da criminalização dessas posturas, mas essencialmente através de medidas que busquem extirpar as causas ou condições sociais que alimentaram e, ainda hoje, alimentam o preconceito racial de cor existente no Brasil.

A desigualdade social no Brasil é escancarada. O abismo entre os que tem muito e os que não tem nada é profundo. E se a situação geral do brasileiro não é das melhores, a situação do negro é pior. Não se pode esquecer que o negro é o elo mais fraco da corrente. Isso ocorre, porque além de sofrer seu jugo como pobre, sobre também seu jugo como negro.

Seja do ponto de vista da história e da historiografia do negro no Brasil, seja em razão dos elementos de sociologia do negro brasileiro, notadamente do tratamento conferido ao negro pela disciplina jurídica, seja em razão das atuais disposições constitucionais, seja ainda, e derradeiramente, em razão do papel primordial do Estado como agente distribuidor, não há como negar a legitimidade do Estado como ente responsável pela promoção das políticas públicas de ação afirmativa.

A legitimidade, anterior, portanto, à legalidade dessas medidas, está fundada tanto nos fatos historiograficamente comprovados, relacionados ao tratamento que o Estado Brasileiro, desde seu período colonial até o presente momento, conferiu ao negro e aos descendentes de africanos, bem como nos estudos sociológicos relacionados ao negro e à sua relação e integração na sociedade brasileira.

A legalidade da promoção das políticas de ação afirmativa também está respaldada pela Constituição Federal de 1988, na sua maior expressão pela promoção do bem de todos, sem preconceitos ou discriminação sob qualquer forma.

A promoção dessas políticas, no entanto, deve ser realizada essencialmente pelo Estado, como responsável pela redução das desigualdades e conflitos sociais. Daí porque essas políticas devem ser eminentemente públicas, ainda que também possam ser realizadas pela iniciativa privada. Até mesmo o incentivo à adoção, por entes privados, de medidas positivas deve ser incentivado pelo Estado.

A utilização, no entanto, dessas políticas de ação afirmativa devem conter em si tanto elementos universalistas, ou seja, que importem em reconhecer o negro enquanto indivíduo ou grupo social integrante de um grupo maior caracterizado por não possuir os meios de produção na sociedade capitalista, e elementos diferencialistas, ou particulares progressivos, que ao mesmo tempo reconheçam a condição do negro enquanto discriminado apenas em razão da sua condição de negro, marcada por seu fenótipo, no Brasil. 

Somente a partir da aplicação de políticas públicas de ação afirmativa em benefício dos negros é que eles efetivamente poderão começar a consolidar a sua condição de efetivo cidadão na sociedade brasileira.

O AMOR NÃO TEM COR?!

O AMOR NÃO TEM COR?! 150 150 Edilene Machado Pereira e Vera Rodrigues

GÊNERO E RAÇA/COR NA SELETIVIDADE AFETIVA DE HOMENS E MULHERES NEGRAS(OS) NA BAHIA E NO RIO GRANDE DO SUL.

O artigo “O Amor não tem Cor?! Gênero e Raça/Cor na Seletividade Afetiva de Homens e Mulheres Negras (os) na Bahia e no Rio Grande do Sul”, de Edilene Machado Pereira e Vera Rodrigues emerge de um fluxo de motivações, advindas tanto da observação dos discursos e silêncios do cotidiano, quanto dos questionamentos suscitados pelos estudos acadêmicos sobre relações raciais. Assim, reunimos nesse artigo um leitura que perpassa dados macros e micros sobre o universo da afetividade entre homens e mulheres auto-declarados negros(as) centralizando nos aspectos de seletividade e percepção da vida afetiva.

Edilene Machado Pereira: Ex-bolsista da Fundação FORD. Mestra em Antropologia (PUC/SP). Especialista em Metodologia de Ensino e Pesquisa (UNEB), Licenciada em Ciências Sociais e Bacharel em Sociologia (UFBA). Membro da Associação Brasileira de Pesquisadoras e Pesquisadores pela Justiça Social (ABRAPPS)

Vera Rodrigues: Doutoranda em Antropologia Social no Programa de Pós-Graduação da Universidade de São Paulo – Bolsista do Programa de Bolsas de Pós-Graduação da Fundação Ford

SOBRE A TEORIA JURÍDICA EM SLAVOV ŽIŽEK

SOBRE A TEORIA JURÍDICA EM SLAVOV ŽIŽEK 150 150 Marcelo Grillo

O Instituto Luiza Gama (ILG) publica a seguir uma entrevista com o professor Marcelo Gomes Franco Grillo, na qual ele explica a teoria jurídica de um dos filósofos contemporâneos mais destacados – e talvez o mais famoso da atualidade: o esloveno Slavoj Žižek, docente e pesquisador na Eslovênia e professor convidado das mais importantes universidades estadunidenses, autor de inúmeras obras – traduzidas no mundo inteiro, inclusive no Brasil – nas quais trata de diversos temas, como política, artes, direito e religião, sempre com um viés crítico e reflexões ousadas. O professor Marcelo Grillo, obteve título de mestre em Direito Político e Econômico pela Universidade Mackenzie apresentando dissertação a respeito do pensamento jurídico Slavoj Žižek, estudo este que serviu de base para seu livro (editora Alfa-Ômega) sobre o filósofo esloveno. Aqui ele destaca algumas de suas impressões e conclusões.

ILG: É possível dizer que uma das grandes contribuições de Žižek para o estudo do Direito é sua crítica à abordagem positivista do Direito. Como sintetizar os pontos fundamentais dessa crítica?

Marcelo Grillo: Slavoj Žižek se opõe ao positivismo jurídico de forma contundente e clara. Ele coloca a questão do hábito – tomando-o como um dado instintivo no homem –, como sendo a marca da aplicação da lei. Essa aplicação ocorre sem a preocupação da justiça do ato de aplicar a lei e, mais sintomaticamente, sem a preocupação da justiça da lei aplicada. A subsunção da lei ao caso concreto é um ato automático, sem procurar saber de sua justeza.
A lei, simplesmente aplicada – eis a maior preocupação dos aplicadores do Direito. O jurista se resume a ser um verdadeiro autômato. Sua operação, muitas vezes, é quase que matemática. Quando muito, em um aprofundamento teórico, o jurista procurará os fundamentos hermenêuticos da aplicação da lei; não divergir da lei. Poucos são os pensadores do Direito que contestam a própria lei; estão a procurar, por um olhar crítico, a fundação do ordenamento jurídico, de uma determinada lei ou de certa decisão judicial. Žižek, justamente por relacionar o instinto do hábito ao positivismo, neste ponto, também, é muito singular.
A aplicação do Direito sem contestar o próprio Direito decorre de um hábito, arraigado na sociedade moderna. Essa mesma sociedade que, na atualidade, pode ser definida como técnica e preocupada com a eficiência.

ILG: Žižek desenvolve críticas contundentes ao Direito e à Democracia. É possível pensar, a partir de seu pensamento, em um definhamento do Direito? Quais os principais aspectos da crítica do esloveno à democracia atual?

Grillo: Žižek é exato e atual na leitura que faz da Democracia. Sua interpretação da Democracia destoa das vozes políticas e jurídicas da atualidade, aquelas que marcam o tom, no mesmo compasso do neoliberalismo.
Žižek, de fato, é atual justamente porque compõe o axioma da Democracia contemporânea, sua condição inerente de ser a partitura da economia globalizada. Então, se é possível pensar em um definhamento do Direito, a partir da democracia, diríamos que sim!
Há muito se sabe que o Estado Democrático de Direito – o Estado constitucional – acompanha um movimento histórico da sociedade. Há quase que uma Constituição real que se forma antes mesmo da Constituição jurídica. O Poder Constituinte é um poder em processo. Dados históricos – econômicos, políticos e sociais – desenham, em um primeiro momento, a estrutura do Estado. Estado Liberal, Estado Social e Estado Neoliberal espelham suas democracias e suas democracias espelham sua textura jurídica. O que temos de democracia, na atualidade, provém das bases econômicas do capitalismo, mas também de uma ideologia. Acusar essa ideologia neoliberal é o que faz Žižek.
Defender a democracia contemporaneamente, em um tempo sem crítica, é defender o capitalismo neoliberal, globalizado e financeiro. E, com todas as particularidades e especificidades da superestrutura no mundo atual, o sistema jurídico se compromete de maneira muito evidente.
Mas, não só em acusar um definhamento do Direito, Žižek contrariamente a esse discurso, percebe a estrutura especifica do direito que sempre, no capitalismo, foi um equivalente da forma mercantil.

ILG: Žižek desenvolve críticas cortantes quanto aos temas da cidadania e dos Direitos Humanos. É correto afirmar que Žižek se coloca em uma contratendência, ao conceber cidadania e Direitos Humanos como incapazes de promover uma “humanização universal”?
Grillo: Neste ponto, a pergunta novamente foi muito feliz, ao lembrar a contracorrente que significa o pensamento de Žižek frente à cidadania e os Direitos Humanos. De fato, os Direitos Humanos não demarcam uma humanização universal, não trazem aos homens a condição mínima e mais pura de humanidade, o que só poderia existir, há muito se sabe, pela divisão material dos bens, pela mudança dos meios de produção do homem.
Os Direitos Humanos, pela crítica do autor esloveno, são uma dádiva sem critério predeterminado e universal. Daí, até poder-se-ia relacionar Direitos Humanos com Geopolítica. Žižek afirma que os EUA, quando procedem às ajudas humanitárias em países necessitados, com fundamento nos Direitos Humanos, sua escolha é aleatória, ou, o que é mais grave ainda, baseada na sua Geopolítica. A crítica aos Direitos Humanos não é no campo jurídico, porém, político. O que o filosofo esloveno afirma é que os Direitos Humanos são utilizados como um discurso de legitimação de decisões aleatórias ou pautadas em uma política internacional unitária. Em diversos assuntos, os EUA descumprem a Declaração Universal dos Direitos Humanos e, em outros, defendem suas causas. Žižek indaga sobre a escolha da ajuda humanitária americana, perguntando o porquê de eles selecionarem os albaneses na Sérvia e não os palestinos, em Israel, e assim por diante. Não há critério de aplicação universal da ajuda humanitária. Mas isso não significa, para Žižek, desconsiderar os ganhos históricos que foram decorrentes das lutas pelos Direitos Humanos. Por isso, para os Direitos Humanos, suas análises se mantêm no quadrante da Geopolítica.
Referente à cidadania, a crítica žižekiana está igualmente no patamar da crítica ao sistema político. Atualmente se tem o atributo da cidadania formal, mas nem todas as pessoas têm a cidadania material. O exercício de todos os direitos, ligados à cidadania, não ocorre uniformemente, uma vez que não estão desvinculados das condições materiais de existência.
Ainda, o cidadão é apenas parcela de uma lógica democrática comprometida aos interesses da política globalizada, na perspectiva do nosso autor.

ILG: Em determinadas passagens da obra de Žižek, fala-se que o Direito “suspende” a verdadeira política. Em seu trabalho, você fala de uma aproximação entre Carl Schmitt e Žižek, entre Ética e Política. Você poderia falar um pouco dessas relações?

Grillo: A relação entre Direito e política é exemplificadora para ilustrar a tecnicidade da sociedade atual. A política, em tempos contemporâneos, é exercida visando substancialmente essa técnica jurídica. O capitalismo deixou esquecido o papel grego da política. Em uma das passagens do livro “Estado de Exceção”, Giorgio Agamben alude que a política foi contaminada pelo Direito e, no melhor dos casos, aparece como Poder Constituinte (“violência que põe o Direito”), quando não diz respeito ao poder de negociar com o Direito.
Žižek é partidário da tese de revalidação do ato político, pela suspensão da ordem vigente. O Estado de exceção para Žižek é a possibilidade de suspender as coordenadas existentes e possivelmente recolocar a política no centro da vida humana, como o foi, na Grécia antiga. Exatamente, aqui, está o vínculo entre Estado de exceção, Ética e política. A suspensão da ordem atual, negando a Ética pós-moderna, para restabelecer uma noção de política que seja mais próxima da grega – eis um dos baluartes de Žižek.

ILG: Sabe-se que o nosso esloveno parte de Lacan, e não de Freud, quanto às análises psicanalíticas. No que tange ao gozo na sociedade de consumo, é possível pensá-lo em uma relação com o Direito contemporâneo?

Grillo: Aqui reside um dos temas mais fascinantes e difíceis de compreender na filosofia de Žižek. Ele não trata diretamente das proposições do gozo no seu aspecto jurídico. O que Žižek faz – conforme dito anteriormente – é unir a falta de universalidade formal da lei ao gozo, como uma nova camada do princípio de realidade, do superego. Isso é exemplar, nos Estados totalitários, onde a aplicação da lei ocorre à vontade dos comandantes, sem universalidade formal.
Mas, a partir da ligação gozo, superego, não universalização formal da lei (pelo menos, conforme conhecida no Estado liberal) e sociedade de consumo, já é possível propor teoria jurídica, respaldada, na Psicanálise de tradição lacaniana, com diálogos correntes com os mais avançados pensadores, tais quais Žižek e, no Brasil, Vladimir Safatle.
O que nós propugnamos, nessa linha de pensamento, é que a mudança do capitalismo industrial para o capitalismo financeiro, da sociedade de produção para a sociedade de consumo, representa, no campo do Direito e da Psicanálise Social, uma ponte que liga Freud a Lacan e, por exemplo, Escola de Frankfurt à Žižek, com visíveis implicações teóricas.
A sociedade de produção precisava ter um sistema jurídico rígido. Tanto é assim, que o liberalismo, até o advento do Estado social, tinha no poder legislativo e no dogma da lei, a grande bandeira jurídica. Por isso, exalta-se a segurança jurídica, a ideia, pós-Revolução Francesa, de que na claridade cessa a interpretação (In Claris Cessat Interpretatio) e de que o juiz é a boca da lei (C’est la bouche qui prononce les paroles de la loi). Nessas sociedades, o superego representa um Direito Universal, objetivo e impessoal, ao máximo.
Com o crescimento da sociedade de consumo, na fase conhecida como capitalismo financeiro, a universalidade jurídica, o dogma da lei e da segurança jurídica tendem a ser flexibilizados, não suprimidos. No Direito, vemos, na atualidade, a mudança de importância do Poder Judiciário; se antes, só cabia a ele interpretar, ser a boca da lei, hoje, sua importância na criação do Direito é materialmente maior, veja-se, o exemplo das súmulas vinculantes. Também vemos uma diferenciação na universalidade do Direito, no que se refere aos Juizados Especiais e a Lei de Arbitragem. Toda essa modificação paradigmática do Direito tem relação direta com a satisfação de um tipo de sociedade que está mais preocupada com o consumo e com o prazer representado pelas formas da Economia capitalista e da produção cultural atual.
Justamente, como contraponto do id, o superego não tem mais, como único fator, a repressão. Ao lado do princípio de prazer, o princípio de realidade é representado pela ideia de gozo, na acepção lacaniana. À princípio, essas são algumas das relações que se pode fazer da Psicanálise lacaniana com o Direito e a sociedade de consumo.

ILG: Em que medida é possível dizer que Žižek é um autor pós-moderno? E em que medida é possível falar de Žižek, enquanto marxista?

Grillo: Essa também é uma questão muito interessante, apesar de muitos pensadores, em especial, da Filosofia, repudiarem uma classificação nesses termos, para explicar a História. Fato é que a época atual tem particularidades sociais – decorrentes, em larga medida, de particularidades econômicas e políticas – que determinam um modo, no mínimo diferente, do agir humano.
Entretanto, também, devemos lembrar que a definição de pós-moderno, ou melhor, a preocupação com esse discurso, é inerente a um saber que não quer ser conservador, mas, ao mesmo tempo, deixa de ser substancialmente crítico, na medida em que procura legitimar-se em uma sociabilidade ao estilo do Estado de bem estar social (pois, mais preocupado com o social), porém, com um toque do requinte liberal. No fundo, o pós-moderno é hedonista e individualista e, quando opera à crítica – aparentemente virulenta ao capitalismo – é só para manter a sua posição de privilégio frente a uma sociedade ainda atrasada e conservadora.
O pensamento pós-moderno é chique; ser pós-moderno é ser chique. Isso pode não significar muito, mas, na essência, revela o quanto de limitação há no pensamento pós-moderno. Toda essa consideração é mais verdadeira ainda, se confrontarmos as teses pós-modernas com a teoria marxista. O pós-moderno não pensa as estruturas de dominação inerentes ao capitalismo e, junto com essas, uma maneira de superá-las.
A partir dessa exposição, poderíamos dizer, com toda a certeza: Žižek não é um autor pós-moderno. Muito pelo contrário, Žižek opera uma crítica – essa sim, virulenta – ao capitalismo e a certo progressismo de pouco diálogo com o materialismo e com a dialética. O autor esloveno não se mantém no posto confortável do pensamento pós-moderno, esse mesmo que assimila as crises e propõe soluções palatáveis para a “elite intelectual” que lhe conforma. Podemos apenas aproximar Žižek do pós-moderno, conforme digo no meu livro, pela retórica e pela utilização da palavra envolta aos acontecimentos diários. Forçando ao máximo à compreensão e a síntese, haveríamos de dizer que Žižek é pós-moderno na forma (no processo), mas bem diferente do que seja o pós-moderno no conteúdo (na substância).
Falar de Žižek enquanto um autor marxista parece ser, sobremodo, mais interessante. Isso porque é pela tomada de posição marxista que aparecerá algumas das contradições do pensamento de Žižek. Na análise jurídica, o filósofo esloveno é partidário da posição de Marx quando afirma que a igualdade formal acarreta a desigualdade material. É pela igualdade na lei que o trabalhador poderá, em condições formalmente iguais com os outros trabalhadores, vender sua força de trabalho para o capitalista que, também em condições de igualdade formal, deverá obter a mais valia. Esse processo de identificação da forma jurídica com a forma mercantil é recorrente na teoria jurídica pachukaniana, da qual Žižek, em certa medida se aproxima. Mas, partindo dessa base marxista, transparece uma contradição na obra do autor esloveno. É naturalmente quando a crítica ao Direito sai dos patamares marxistas literais que a contradição, especialmente na análise jurídica, aparece. A teoria marxista não reconhece outra possibilidade para o Direito senão identificá-lo com a forma-mercadoria. Uma amplitude de diálogos de Žižek com outros autores, que não os marxistas, torna-o heteróclito demais para ser qualificado puramente como um autor marxista. Então, em que medida é possível falar de Žižek, enquanto marxista? Na exata medida que o nosso filósofo identifica a forma jurídica à forma mercantil. Aparentemente, em nada mais. Não em um todo, na sua obra. Não como filósofo, talvez. Isso ainda é um tema que me incomoda muito, enquanto pesquisador, e dá para percebê-lo em meu livro: definir um marcador teórico para Žižek.

IGUALDADE E AÇÕES AFIRMATIVAS

IGUALDADE E AÇÕES AFIRMATIVAS 150 150 Camilo Onoda Caldas

Camilo Onoda Caldas

O Congresso Nacional não aprovou os artigos do Estatuto da Igualdade Racial que versavam sobre ações afirmativas para acesso às universidades federais. O chamado “sistema de cotas” incluía reserva de vagas para negros e índios. Essa é uma questão de alta complexidade, que precisa ser debatida com seriedade. De maneira sucinta, queremos aqui suscitar a reflexão de alguns pontos, ajudando a eliminar alguns preconceitos e lugares comuns sobre o tema.

O debate

A grande mídia se manifesta sobre esse tema de maneira míope e parcial. Muitas revistas e jornais de circulação nacional, inclusive, sequer dão espaço para os defensores das ações afirmativas.

Quando muito, reproduzem os argumentos favoráveis de maneira distorcida, para em seguida criticá-los. Não é à toa que a maioria das pessoas está muito mal informada sobre o assunto.

O problema da pobreza

“As cotas devem ser para as pessoas pobres, não para negros”. Esse é talvez o argumento mais comum sobre o tema. Ele deve ser analisado com cautela considerando dois aspectos.

Estudantes de escola pública

Há projetos de lei que contemplam a reserva de vagas para estudantes oriundos da escola pública, portanto, abrange os menos favorecidos economicamente, independentemente da cor da pele.

Os negros

O argumento que defende o critério econômico para as cotas, na verdade, é o fundamento da ação afirmativa em prol dos negros. Todos os indicadores sócio-econômicos são unânimes: os negros têm ganhos inferiores aos brancos pelo fato de ser negros. A diferença salarial, inclusive, torna-se maior conforme aumenta seu grau de escolaridade. A causa: racismo.

Estatística

O sociólogo português Boaventura Santos faz uma observação oportuna: só quem é homem acha que o machismo acabou, assim como só quem é branco é capaz de dizer que o racismo não existe mais. O racismo é sim uma prática disseminada no Brasil e não faltariam exemplos para ilustrar sua existência. Prefiro me ater a algumas estatísticas. Pesquisa do Seade/Dieese aponta que na Grande São Paulo a renda dos negros é metade da dos não-negros. São R$ 4,36 por hora, em média, contra R$ 7,98.

Escolaridade

Os que insistem em negar a existência do racismo logo dizem: a diferença ocorre porque a escolaridade de negros e não-negros é diferente. Mito. O indivíduo negro que não concluiu o ensino fundamental tem rendimento real de R$ 3,44/hora, e o do não-negro, R$ 4,10/hora. Diferença de 19,2%. Entre indivíduos com nível superior, temos R$ 13,86/hora para os negros, R$ 19,49/hora para os não-negros. Diferença de 40%.

Explicação

Nas profissões em que não se exige escolaridade, as remunerações estão mais próximas ao salário mínimo. Quando se trata de profissões que exigem nível superior, as remunerações são maiores e, portanto, o racismo fica mais evidente como elemento que impede os negros de conseguirem ocupações mais valorizadas e bem remuneradas.Por essa razão, é incorreto imaginar que uma política pública de inclusão social deve ter como único critério a renda do cidadão. A ação afirmativa baseada na cor da pele procura justamente corrigir a situação econômica desigual dos negros que torna mais difícil para eles ter acesso à universidade pública.

Raça

Alguns querem transformar as ações afirmativas em um problema, quando na verdade o problema mesmo é outro: o racismo. Cinicamente, alguns dizem que as cotas não podem ser adotadas, porque não existem “raças”. É verdade. Não existem raças humanas diferentes. Racismo, porém, existe. E o desprezo racial, consciente ou inconsciente, é responsável pela situação desfavorável vivida por negros. As cotas não visam ao favorecimento, visam a corrigir desigualdades.

Isonomia

Um dos argumentos contrário às cotas é: “Todos são iguais perante a lei”. Somente quem não entende nada de igualdade, pode dizer que por essa razão não podem existir cotas.

Desigualdade

O filósofo grego Aristóteles, em sua obra clássica “Ética a Nicômaco”, ensinava que justiça é “tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais”. Justamente pelo fato de haver racismo, e isso resultar no menor acesso dos negros à universidade, é que as ações afirmativas devem existir.

Constitucionalidade

A idéia de que a isonomia – igualdade perante a lei – comporta tratamentos diferenciados é perfeitamente constitucional. Tanto é assim, que a própria Constituição Federal brasileira contém artigos neste sentido. A aposentadoria das mulheres, por exemplo, é garantida mais precocemente que a dos homens. Motivo: a desigualdade. As mulheres estão submetidas a uma dupla jornada de trabalho – doméstica e profissional – e isto justifica a desigualdade perante a lei.

Meritocracia

Outro argumento contrário às cotas é o da “meritocracia”. Quem tem melhor desempenho tem direito às vagas. Justamente o que as ações afirmativas querem garantir é a meritocracia. A existência do preconceito torna mais difícil para certos grupos sociais atingir o mesmo desempenho do que outros. Porém, quando se é homem, branco, de classe média, isso é imperceptível e, portanto, tais dificuldade parecem irreais. Mas elas existem. Exemplifico citando o caso das mulheres: quando elas conseguem alcançar a mesma posição social que os homens – no meio político ou profissional – alguém acredita que elas tiveram de superar os mesmos obstáculos para se igualar? O mesmo vale para negros e brancos no vestibular. Um negro com desempenho igual a um branco, portanto, tem mais méritos, pois, como demonstramos acima, ser negro implica numa série óbices sociais com implicações materiais.

Conclusão

Talvez a única crítica legítima contra o regime de cotas seja a de viés marxista, que pode ser resumido da seguinte maneira: as cotas não acabam com as contradições estruturais do capitalismo, ou seja, no máximo, as cotas levarão os negros a reproduzir as mesmas iniqüidades praticadas hoje pelos brancos nesse sistema econômico (em suma, o problema central seria acabar com os algozes, não mudar sua cor). De fato, é preciso reconhecer o caráter limitado das cotas. No entanto, isso não a exclui como possibilidade concreta de melhorar a qualidade de vida dos negros, ainda que dentro dos estritos do limite do capitalismo. Mais do que isso: sem dúvida nenhuma, a ascensão econômica dos negros, por meio da educação, irá diminuir o racismo – pois uma de suas causas decorre justamente dos negros serem mais pobres e trabalharem em atividades de menor prestígio. Ao ocupar posições sociais mais elevadas, os preconceitos sobre os negros tendem a diminuir. Por isso, mesmo do ponto de vista marxista, a defesa de cotas é coerente e necessária.

Camilo Onoda Caldas é bacharel em Direito e mestre em Direito Político e Econômico (Universidade Presbiteriana Mackenzie), doutorando em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela Faculdade de Direito do Largo do São Francisco – Universidade de São Paulo (USP). É também Bacharel em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP). É autor da obra Perspectivas para o Direito e a Cidadania (Ed. Alfa-Ômega) e, em conjunto com outros autores, do livro Manual de Metodologia do Direito: Estudo e Pesquisa (Ed. Quartier Latin). Foi editor da revista jurídica Direito e Sociedade. Foi pesquisador na área de Direito em projeto do Ministério da Justiça do Brasil em parceria com as Organização das Nações Unidas (ONU). Atualmente, é Diretor do Instituto Luiz Gama, advogado, colunista político do jornal O Regional, professor da Universidade São Judas (São Paulo) e de cursos preparatórios na Área de Direito.

A CAMPANHA CONTRA O RACISMO DA UNICEF

A CAMPANHA CONTRA O RACISMO DA UNICEF 150 150 Camilo Onoda Caldas

Camilo Onoda Caldas

A UNICEF – Fundo das Nações Unidas para a Infância – está presente no Brasil desde 1950, e no ano de 2010 lança uma campanha de combate ao racismo. Uma iniciativa importante, sobretudo no Brasil onde setores conservadores atacam ou silenciam sobre iniciativas dessa natureza, ou ainda, insistem em dizer que “não somos racistas”, baseados na falsa premissa de que isso não poderia ocorrer em um país de cidadãos miscigenados.

Segundo os idealizadores da campanha “a UNICEF e seus parceiros fazem um alerta à sociedade sobre os impactos do racismo na infância e adolescência e sobre a necessidade de uma mobilização social que assegure o respeito e a igualdade étnico-racial desde a infância”.

Ainda que a campanha possa vir a ter efeitos bastante limitados e, geralmente, estimule iniciativas tratando do problema no plano cultural (sem provocar o enfrentamento de aspectos mais profundos, principalmente o econômico que estrutura e sustenta a existência da discriminação), trata-se de uma iniciativa válida que deve ser apoiada por toda sociedade civil.

Abaixo, transcrevemos as contribuições que a campanha sugere para combater o racismo na infância e na adolescência:

1. Eduque as crianças para o respeito à diferença. Ela está nos tipos de brinquedos, nas línguas faladas, nos vários costumes entre os amigos e pessoas de diferentes culturas, raças e etnias. As diferenças enriquecem nosso conhecimento.

2. Textos, histórias, olhares, piadas e expressões podem ser estigmatizantes com outras crianças, culturas e tradições. Indigne-se e esteja alerta se isso acontecer.

3. Não classifique o outro pela cor da pele; o essencial você ainda não viu. Lembre-se: racismo é crime.

4. Se seu filho ou filha foi discriminado, abrace-o, apoie-o. Mostre-lhe que a diferença entre as pessoas é legal e que cada um pode usufruir de seus direitos igualmente. Toda criança tem o direito de crescer sem ser discriminada.

5. Não deixe de denunciar. Em todos os casos de discriminação, você deve buscar defesa no conselho tutelar, nas ouvidorias dos serviços públicos, na OAB e nas delegacias de proteção à infância e adolescência. A discriminação é uma violação de direitos.

6. Proporcione e estimule a convivência de crianças de diferentes raças e etnias nas brincadeiras, nas salas de aula, em casa ou em qualquer outro lugar.

7. Valorize e incentive o comportamento respeitoso e sem preconceito em relação à diversidade étnico-racial.

8. Muitas empresas estão revendo sua política de seleção e de pessoal com base na multiculturalidade e na igualdade racial. Procure saber se o local onde você trabalha participa também dessa agenda. Se não, fale disso com seus colegas e supervisores.

9. Órgãos públicos de saúde e de assistência social estão trabalhando com rotinas de atendimento sem discriminação para famílias indígenas e negras. Você pode cobrar essa postura dos serviços de saúde e sociais da sua cidade. Valorize as iniciativas nesse sentido.

10. As escolas são grandes espaços de aprendizagem. Em muitas, as crianças e os adolescentes estão aprendendo sobre a história e a cultura dos povos indígenas e da população negra; e como enfrentar o racismo. Ajude a escola de seus filhos a também adotar essa postura.

Camilo Onoda Caldas é bacharel em Direito e mestre em Direito Político e Econômico (Universidade Presbiteriana Mackenzie), doutorando em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela Faculdade de Direito do Largo do São Francisco – Universidade de São Paulo (USP). É também Bacharel em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP). É autor da obra Perspectivas para o Direito e a Cidadania (Ed. Alfa-Ômega) e, em conjunto com outros autores, do livro Manual de Metodologia do Direito: Estudo e Pesquisa (Ed. Quartier Latin). Foi editor da revista jurídica Direito e Sociedade. Foi pesquisador na área de Direito em projeto do Ministério da Justiça do Brasil em parceria com as Organização das Nações Unidas (ONU). Atualmente, é Diretor do Instituto Luiz Gama, advogado, colunista político do jornal O Regional, professor da Universidade São Judas (São Paulo) e de cursos preparatórios na Área de Direito.

O ACESSO À UNIVERSIDADE E A EMANCIPAÇÃO DOS AFROBRASILEIROS

O ACESSO À UNIVERSIDADE E A EMANCIPAÇÃO DOS AFROBRASILEIROS 150 150 Silvio Luiz de Almeida

Silvio Luiz de Almeida

Silvio Luiz de Almeida é bacharel em Direito e mestre em Direito Político e Econômico (Universidade Presbiteriana Mackenzie), doutorando em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela Faculdade de Direito do Largo do São Francisco – Universidade de São Paulo (USP). É também Bacharel em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP). É autor da obra História e Consciência de Classe: o direito no jovem Lukács (Ed. Alfa-Ômega) e, em conjunto com outros autores, do livro Manual de Metodologia do Direito: Estudo e Pesquisa (Ed. Quartier Latin). Foi pesquisador na área de Direito em projeto do Ministério da Justiça do Brasil em parceria com as Organização das Nações Unidas (ONU). Atualmente, é Presidente do Instituto Luiz Gama, advogado, professor da Universidade São Judas (São Paulo) e de cursos preparatórios na Área de Direito.

Ter o nome de um familiar ou amigo na lista de aprovados do vestibular é um momento especial na vida de qualquer família brasileira. Esta alegria é ainda maior quando a universidade é pública, visto que no Brasil a universidade pública é tida como de maior qualidade e, por este motivo, a mais disputada entre os candidatos. Passar no vestibular, ainda mais no de uma universidade pública, tem o simbolismo de um rito de passagem, como se só agora depois da aprovação, o novel universitário estivesse pronto para exercer sua autonomia. Nasce a perspectiva de ascensão social e de um possível lugar ao sol no mercado de trabalho.

Nas famílias negras a situação ganha contornos mais expressivos. A discriminação de que os negros deste país historicamente são vítimas, produziu tamanha distorção social que é possível afirmar que a universidade brasileira é eminentemente branca, principalmente a pública, em que, paradoxalmente, estudam os mais ricos que, não por acaso, também são brancos.

Um simples olhar para a realidade nos revela a seguinte situação: no ensino médio, os mais ricos estudam nas escolas particulares e que oferecem as melhores condições. Já os mais pobres fazem o ensino médio na escola pública, que geralmente está caindo aos pedaços, com professores desmotivados e sem os equipamentos mínimos. Mas quando a questão é a universidade, inacreditavelmente, os ricos preferem ir para as escolas públicas e gratuitas, que recebem grande investimento governamental e em que o ensino, a pesquisa e a extensão têm maior qualidade. E os mais pobres? Vão para as universidades e faculdades privadas e pagas, em que o ensino, salvo raras e conhecidas exceções, é precário e onde praticamente não se tem pesquisa e extensão. E o pior de tudo é que tanto o aluno rico que fez o ensino médio em escola privada e boa, quanto o aluno pobre que estudou na escola pública e ruim, fazem o mesmo vestibular para entrar na universidade pública, um vestibular para o qual o aluno rico da escola privada é preparado, desde o primeiro dia de aula. No final das contas a universidade gratuita, que é paga principalmente pelos mais pobres (lembremos que os tributos que sustentam o Estado incidem de forma mais sensível sobre eles), é majoritariamente freqüentada pelos mais ricos.

Com isto se quer afirmar que proporcionalmente à participação dos negros na composição étnico-racial da sociedade brasileira, o número de negros universitários é praticamente irrelevante. Segundo a “Síntese de indicadores sociais” do ano de 2007, realizada pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), em 1997, apenas 9,6% dos brancos e 2,2% negros, de 25 anos ou mais, tinham concluído a universidade. Em 2007, esses percentuais eram de 13,4% e 4%, respectivamente. Ainda consoante a pesquisa, no ano de 2007 a taxa de freqüência em curso universitário para estudantes entre 18 e 25 anos de idade na população branca (19,4%) era quase o triplo da registrada na negra (6,8%). Este déficit de escolaridade ajuda a compreender porque a diferença de renda entre brancos e negros chega até 50% a favor dos brancos. De tal sorte que não é difícil inferir que para as famílias negras do Brasil a entrada de um dos seus na universidade representa não só a realização do sonho de mobilidade social, mas também a vitória contra uma desigualdade historicamente construída. Afinal, o negro universitário é aquele que superou a sina e fugiu da ponta mais robusta e perversa das estatísticas; a ponta em que estão alocados aqueles que não ingressaram no ensino superior, e a quem estão reservados os trabalhos precários e, conseqüentemente, os mais baixos salários.

Mas além do orgulho e do sentimento de identidade, é necessária uma maior reflexão sobre o significado da entrada do afro-brasileiro no ensino superior. O problema maior repousa no fato de que muito se pensa na inclusão do negro na estrutura universitária, mas pouco se reflete acerca da própria estrutura da qual se quer participar. Não se pode perder de vista o fato de que a estrutura do ensino superior é apenas parte da mesma estrutura social que produz a desigualdade e a discriminação que se volta contra os afro-brasileiros. Ou seja, sem a devida reflexão crítica, o esforço para acessar ao ensino superior pode transformar-se numa frustrada tentativa de salvar o oprimido oferecendo-lhe mais opressão, o que seria o mesmo que oferecer a alguém que reclama de falta de ar um saco plástico para envolver a cabeça.

Cabe considerar que o “ser negro” é muito mais do que a cor da pele. Em primeiro lugar, “ser” exprime uma condição existencial. E existir implica em estar no mundo com os outros. “Ser”, portanto, é situação e relação. “Ser negro” ou “ser branco” é pertencer a uma imensa rede experiências cujos significados só se apresentam mediante a análise da situação concreta e das relações histórico-sociais que formam este “ser”. O modo de ser do homem ou mulher negros se reflete, antes de tudo, em uma ligação específica com o mundo e com os outros, uma relação cuja compreensão não está na análise biológica ou meramente simbólica, vez que o ser humano é ser social.

Assim, a diferença entre um branco e um negro não pode jamais ser explicada pela biologia, mas somente pela análise social. A vida histórico-social construiu tais diferenças. Um negro é um negro porque é tratado como negro, enquanto um branco é um branco porque é tratado como branco. Ao “ser negro” está associada uma rede de símbolos e valores que ao ser branco não aparecem. Isto se explica pelo fato de que ser branco é “normal”, ou seja, à rede simbólica e valorativa dos brancos é a “norma” (daí o “normal”), é a regra. A dos negros é a exceção, é o exótico, o que é “anormal” (fora da norma). “Branco” não se refere apenas à cor da pele, mas a todo um conjunto de atitudes e de privilégios políticos e econômicos que nossa sociedade atribui aos que possuem um fenótipo europeizado.

A universidade não está no universo das relações que socialmente foram reservadas aos negros. Ela pertence a uma estrutura de mundo projetada para a exclusão do negro. Neste ponto, é emblemático o fato da universidade brasileira ter sido declaradamente criada para formar as “elites” que governariam este país. A emancipação das minorias através do ensino jamais foi um projeto do Estado brasileiro, que entre outras coisas, sempre zelou pela ausência da questão racial no debates educacionais. Os cursos universitários de direito no Brasil, por exemplo, foram inaugurados sob a égide de um regime escravocrata, o que significa que os “conteúdos” das disciplinas ensinadas aos alunos tentavam equilibrar um discurso liberal em defesa dos direitos fundamentais do homem e, ao mesmo tempo, a legitimação de uma realidade jurídica que tratava os negros como “coisas”.

Daí não ser incomum que seja imposto ao universitário negro o abandono de sua identidade histórica e o rompimento com os laços de solidariedade com seus semelhantes. O “ser negro”, enquanto produto da história, é levado a emular o “ser branco” despindo-se de seus referenciais simbólicos e alienando-se de sua condição existencial, de seu ser-no-mundo, de sua situação política. Este processo se dá desde o ambiente acadêmico até o conteúdo das disciplinas (que muitas vezes, mesmo nos cursos de humanas, “apagam” a questão racial de suas respectivas abordagens). Ao adentrar nas estruturas que possibilitam a “ascensão social”, o negro muitas vezes passa a servir à causa da opressão, mas sem nunca deixar de ser oprimido.

Pede-se ao negro que se torne branco. Subjugado pelas forças de uma estrutura social racista, o negro tende a assumir o papel do opressor, negando sua condição existencial, que é histórica, e que por ser histórica, é essencialmente política. Torna-se uma versão trágica daquele personagem do cinema americano do início do século passado, em que os atores brancos pintavam o rosto de negro porque os negros não podiam atuar; no caso, da universidade, quando alienado, o negro pinta o rosto de branco, conquanto sua pele permaneça negra, com tudo o que significa ter uma pele negra na sociedade em que vivemos.

Por estar imerso na realidade opressora – no caso a universidade -, não surpreende que o oprimido identifique-se com o opressor ao invés de libertar-se. Isto se verifica na fantasia da “integração” que, longe de estabelecer parâmetros para uma convivência autêntica e respeitosa, é uma forma de exigir a supressão do compromisso que o negro universitário tem para com todos os outros afrobrasileiros.

Formam-se médicos ou advogados inconscientes de sua responsabilidade racial e política, preocupados apenas em como atender nas grandes clínicas ou escritórios dos bairros ricos e de classe média alta, em que serão sempre o “médico negro” ou o “advogado negro” dos brancos e ricos. Servirão apenas como a “prova” daqueles que alegam a “justiça” e a “meritocracia” de um sistema que de justo e meritocrático nada tem.

A luta pelo acesso ao ensino superior é relevante e deve ser feita de modo sistemático pelos movimentos sociais, até para que possam ser ocupados espaços de poder do qual a universidade, como produtora de conhecimento, é exemplo. Todavia, a transformação do estruturalmente oprimido numa caricatura do opressor somente pode ser evitada se a entrada no ensino superior não for vista apenas como uma oportunidade de “mobilidade social” (que na prática significa ascender ao mundo dos sociologicamente brancos), mas como um ato político, na sua inteireza. Que a entrada no ensino superior não seja vista como um ato de superação de um indivíduo, mas o resultado de um trabalho coletivo, que resulta no compromisso social do universitário. Deve a vida universitária ser vista como esclarecimento, de tomada de consciência do aluno de sua posição no mundo e, portanto, das possibilidades de mudança.

Só assim, com a libertação do negro, poderíamos pensar no fim da oposição negro-branco, vez que tal contradição é baseada no poder que um pólo detém sobre o outro. A libertação do negro é também a libertação do branco, no sentido de que o fim da dominação que sustentava a relação, a significação social de “ser negro” e “ser branco” fica esvaziada de conteúdo.

O universitário afrobrasileiro deve saber que jamais será livre enquanto permanecer inerte face à ausência de liberdade dos seus semelhantes. A dignidade e a liberdade são conquistas que vão muito além da aprovação no vestibular e requer o envolvimento de todos que acreditam na possibilidade de um mundo justo.

REFERÊNCIAS

Sobre educação e luta para que oprimidos não se tornem opressores, o mestre Paulo Freire soube como ninguém falar a respeito em seu clássico livro “Pedagogia do oprimido”:

http://paulofreirefinland.org/wp-content/uploads/2007/02/pedagogia_do_oprimido.pdf

As estatísticas que demonstram a situação do negro no sistema de educação superior estão na “Síntese de indicadores sociais 2008” do IBGE:

http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/condicaodevida/indicadoresminimos/sinteseindicsociais2008/indic_sociais2008.pdf

Sobre a questão racial e sua vinculação com as políticas educacionais, há um interessante artigo sobre o conceito de branquidade na educação do pesquisador Michael W. Apple, da Universidade de Wiscosin nos EUA

http://www.unemat.br/pesquisa/coeduc/downloads/politicas_de_direita_e_branquidade_a_presenca_ausente_da_raca_nas_reformas_educacionais.pdf

O TRATAMENTO DA QUESTÃO DO NEGRO APÓS A CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988

O TRATAMENTO DA QUESTÃO DO NEGRO APÓS A CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 150 150 Renato Aparecido Gomes

Renato Aparecido Gomes

A promulgação da Constituição Federal de 1988 atendeu várias reivindicações de diversos movimentos sociais, inclusive do movimento negro. Com isso abriam-se as possibilidades para uma legislação ordinária mais profícua em favor do afro-descendente.

A Carta Magna de 1988 estabeleceu como fundamento da República Federativa do Brasil, a dignidade da pessoa humana e ter consagrado como objetivos fundamentais a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, a da erradicação da pobreza, marginalização e redução das desigualdades sociais, além da promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

No capítulo destinado aos Direitos e Garantias Fundamentais, dois incisos do art. 5º merecem destaque, quais sejam os incisos XLI e XLII:

LXI – A lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdade fundamentais;

LXII – A prática de racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à penal de reclusão, nos termos da Lei;

A partir da Constituição de 1988, portanto, as disposições constitucionais corrigiram um dos graves erros cometidos pela Lei Afonso Arinos, definindo a prática de racismo como crime e não mais como contravenção. O racismo passou a ser considerado crime inafiançável, imprescritível e punido com reclusão.

Donde que pode concluir que, se comparado à Lei Afonso Arinos, o avanço legislativo foi evidente. Todavia, a eficácia de tais normas ficou limitada à atuação do legislador ordinário. Na questão do racismo, foi publicada a Lei 7716/89, que definiu diversos tipos para combater as práticas racistas. Posteriormente, a Lei 9459/97, ampliou o sentido da norma anterior para criminalizar também a discriminação e preconceito praticados não somente em razão da cor, mas também de etnia, religião e procedência. No entanto, mais que as garantias de não discriminação, o que se tem por meio da criminalização da prática do racismo e da discriminação racial, a Constituição possibilitou atacar o problema da desigualdade racial existente no Brasil mediante a elaboração de normas que permitam aos negros acessar efetivas oportunidades de empregos, à educação, além de preservar as suas características enquanto grupo e valorizar essas características junto à sociedade. A Constituição permitiu que o Estado pudesse atuar de forma efetiva na integração do negro na sociedade. Permitiu, assim, entre outras coisas, o resgate de sua auto-estima enquanto negro e sujeito histórico.

Essas medidas legislativas revestem-se de um caráter público e de relevância nacional, uma vez que objetivam atender os 46% da população brasileira que oficialmente se declararam negros no censo realizado pelo IBGE. É de se destacar que tais dados são fruto de uma pesquisa em que os afro-descendentes são considerados como pertencentes a esse grupo na medida em que se autodeclaram como afro-descendentes. Uma vez que o passing no Brasil é facilitado, não seria de impressionar se o número de afro-descendentes fosse percentualmente maior que o divulgado oficialmente IBGE.

A efetivação dessas políticas públicas pelo Estado Brasileiro deveria realizar-se mediante a incorporação, em seus textos legislativos, de dispositivos capazes de buscar a extinção das causas desses conflitos sociais.

Ao Direito, na sua expressão legislativa e enquanto instrumento do Estado, caberá o papel transformador de buscar afirmar a negritude como elemento importante dos negros para a formação da sociedade brasileira, não para hierarquizá-lo em detrimento de qualquer outro grupo que componha essa mesma sociedade, mas para que os negros possam resgatar a sua auto-estima e sentir orgulho de ser negro.

Essas normas com conteúdo mais humanizado, no tratamento de questões relacionados aos negros, devem outorgar benefícios para essa população, com especial atenção para a população mais pobre. As normas de conteúdos mais técnicos, como aquelas de criminalização de comportamentos racistas, devem dar lugar a medidas positivas que ao emancipar os grupos sociais, em especial, o negro, com o tempo reduzirá as práticas racistas tratadas como crime. A eliminação do racismo ocorrerá não por meio de sua criminalização, mas por meio da educação, respeito, reconhecimento e convivência entre todos os grupos componentes da sociedade brasileira.

Os conteúdos primários, de cunho econômico e social, acompanhados de medidas que apontem para uma transformação da realidade vivenciada pela população negra, até então desprezados, deve ser buscado, em detrimento do formalismo que, aliado à técnica da profissão jurídica, mascara de forma eficaz o velho objetivo ideológico da dominação política. Mas esses conteúdos primários não devem ser adaptados aos interesses de grupos conservadores capitalistas, sob pena da distorção dos fins originalmente colimados, serem substituídos por objetivos perversos.

É o que pode ocorrer se a promoção de políticas públicas de ação afirmativa se prestarem silenciosamente à uma nova forma de de embranquecimento da população negra. Embora o tratamento relativo às políticas públicas de ação afirmativa vá ser realizado com maior cuidado em capítulo próprio, vários são os questionamentos que se pode deduzir sobre o tema, principalmente quando se observa que a discussão concentra-se apenas sobre um tipo de política de ação afirmativa, qual seja, a política de cotas. Porque essa restrição, e a que ela se destina e a quem ela interessa? O que está por traz dessa limitação? Quais são os objetivos verdadeiramente pretendidos? A quem essas políticas se destinam? Corrigirão efetivamente as desigualdades sociais? Importam numa medida de transformação social? Essas são algumas indagações importantes que iremos comentar em outra oportunidade.

Renato Aparecido Gomes é bacharel em Direito e mestre em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, doutorando em Direitos Humanos pela Universidad Pablo de Olavide: Sevilla – Espanha. Foi Membro da Comissão de Estudos da Concorrência e Regulação Econômica da OAB/SP – 2004 a 2006. Atualmente, é Vice-Presidente do Instituto Luiz Gama, advogado, Membro da Academia Brasileira de Direito Tributário (ABDT), professor em São Paulo na Universidade São Judas Tadeu, na Universidade Nove de Julho e na Pós-Graduação do Instituto de Ensino Jurídico Luiz Flávio Gomes.

Justiça reparatória e desenvolvimento sustentável: um caminho a seguir?

Justiça reparatória e desenvolvimento sustentável: um caminho a seguir? 150 150 Michael McEachrane

O Instituto Luiz Gama publica, a seguir, o discurso de Michael McEachrane no primeiro encontro internacional do Fórum Permanente de Afrodescendentes da ONU, na sede das Nações Unidas em Genebra, na Suíça, em dezembro de 2022, do qual o ILG participou. Em sua fala, McEachrane afirmou que há duas questões indispensáveis para o estabelecimento da justiça racial para pessoas de ascendência africana assim dentro e entre os países: a justiça reparatória e o desenvolvimento sustentável global.

Reparatory Justice and Sustainable Development: A Way Forward?

Reparatory justice is at the heart of both racial justice for people of African descent and global sustainable development. From a human rights perspective reparatory justice is about rectifying and transforming systemic and structural injustices that were established by past injustices and crimes against humanity. It is about establishing in their place—out of the shambles of inhumanity, tragedy, and trauma—social and global justice in the sense of full and equal enjoyment of human dignity, rights, and non-discrimination. 

I propose that reparatory justice should be understood as indispensable to achieving sustainable development and that it holds States responsible for their contributions to structural inequities within and among countries—including the already devastating impacts of climate change and ecological destruction.  

A major step towards racial justice and healing, both within and among countries, was taken at the 2001 Third World Conference Against Racism in South Africa with the adoption of the Durban Declaration and Programme of Action, also known as theDDPA. As a human rights instrument, the DDPA recognizes colonialism as the main culprit of today’s structural racial inequities within as well as among countries. It declares that “colonialism has led to racism, racial discrimination, xenophobia and related intolerance, and that Africans and people of African descent, and people of Asian descent and indigenous peoples were victims of colonialism and continue to be victims of its consequences.” It recognizes the suffering caused by colonialism and regrets that the effects and persistence of its “structures and practices have been among the factors contributing to lasting social and economic inequalities in many parts of the world today.” It acknowledges and profoundly regrets “the massive human suffering and the tragic plight of millions of men, women and children” caused by enslavement, the transatlantic trade, apartheid, colonialism, and genocide. It notes that in the past “some States have taken the initiative to apologize and paid reparation, where appropriate, for grave and massive violations committed”. Hence, with a “view to closing those dark chapters in history and as a means of reconciliation and healing”, the DDPA invites “the international community and its members to honour the memory of the victims of these tragedies”. Above all, the DDPA affirms that regarding the histories of enslavement, the transatlantic trade, apartheid, colonialism, and genocide, there is a “moral obligation on the part of all concerned States” and calls “upon these States to take appropriate and effective measures to halt and reverse the lasting consequences of those practices”. 

The call of the DDPA for reparatory justice—to recognising and addressing racial inequities within and among countries that were established by colonialism, including enslavement—is appropriately understood as central to the spirit, goals, and implementation of Agenda 2030for Sustainable Development. The ultimate goal of Agenda 2030 is to “ensure that all human beings can fulfil their potential in dignity and equality and in a healthy environment”. This is a “world in which every country enjoys sustained inclusive and sustainable economic growth and decent work for all” as well as “a world in which consumption and production patterns and use of natural resources (…) are sustainable”. 

As recognized by Agenda 2030, this means decreasing inequities in the enjoyment of human dignity and rights and the use of natural resources within the bounds of ecological sustainability and regeneration. In this context, the DDPA recognises that colonialism, including enslavement and apartheid, remains quintessential to the entrenched nature of racial discrimination within and among countries. At the domestic level, many societies remain racially stratified in ways that are continuous with colonial era racial distinctions, domination, and subordination. At the international level, developed and developing, high-income and low-income countries, and their populations, cluster in ways that suggest the perpetuation of colonial era racial hierarchies. In this sense, today as during the era of colonialism, racial privilege and disprivilege at the national and global levels reflect and reinforce each other. 

Reparatory justice, as envisioned by the DDPA, recognises and addresses the domestic and international impacts of colonialism on people of African descent, indigenous people and other people of colour, and calls for a closing of racial gaps in the enjoyment of human dignity, rights, and in the access to resources. This includes decreasing inequities between developed and developing countries, as recognised by Agenda 2030. In turn, sustainable development will require us to increase the enjoyment of human dignity and rights—especially of the global majority in developing countries—while drastically cutting global emissions and curbing unsustainable use of natural resources. This will require us to transform the global economy. The current global economy is premised on an unequal and unsustainable use of human and natural resources in developing countries—to the benefit of developed countries and the detriment of developing countries, including climate change induced loss and damages. It will also require us to transform the unequal relationship between developed and developing countries in international relations and institutions of global governance such as here at the United Nations and International Financial Institutions such as the World Trade Organization, the World Bank, and International Monetary Fund. 

We should not forget that all developed countries are either countries that were directly or indirectly involved in, and benefitted from, colonialism and colonial relations or are themselves former colonial settler states. Therefore, at heart—and as recognised by the DDPA—these much-needed transformations towards sustainable development are a matter of addressing legacies of colonialism and the perpetuation of colonial social and global relationships and conditions. At the global level, they are a matter of holding developed countries accountable for their contributions to, benefit from and perpetuation of colonial social, economic, and environmental relationships, and their outstanding responsibility to address and transform these.

The call of the DDPA to reparatory justice is therefore at the heart of sustainable development and should be understood as a critical element in realising the spirit and goals of Agenda 2030. The moral obligation, especially albeit not exclusively, of developed countries to redress and help transform legacies of colonialism and enslavement is part and parcel of their responsibilities to address climate change, drastically cut greenhouse emissions, provide loss and damage funds for developing countries, curb unsustainable use of natural resources, ensure ecological sustainability, dignified working conditions, fair pricing and profits in global value and supply chains from extraction to consumption, and help reform the UN and other institutions of global governance towards an international order that is democratic and equitable. 

In a holistic and human rights-based understanding—as outlined by the DDPA and reflected in the concrete call for reparatory justice by the Member States of the Caribbean Community—reparatory justice is ultimately a matter of decolonizing social and global conditions and relations towards the creation of social and international orders of equality and non-discrimination in which human rights can be fully realised. In this sense, reparatory justice is a matter of rectifying structural injustices in the present that are continuations of past injustices and mutually committing to human rights and international law principles of dignity, equality, and non-discrimination. This human rights-based understanding of reparations is different from understanding it in terms of retribution or punishment or primarily as a matter of compensation. Reparatory justice will no doubt cost. However, the primary objective is to transform inequitable conditions and relations that are rooted in historical injustices and in their place establish full and equal enjoyment of human dignity and rights. 

This first Forum session is an opportunity to discuss which sort of recommendations that the Forum should adopt to move towards realising a human rights-based approach to reparatory justice for people of African descent within the context of sustainable development and the implementation of the DDPA. 

Here are a few preliminary recommendations:

  1. It is essential that reparatory justice is properly and comprehensively included in the UN Declaration on the human rights of people of African descent. More will be said about this tomorrow, so I won’t say more about this here. 
  2. The legal and institutional grounds for pursuing reparatory justice at the UN should be examined to clarify the possibilities of pursuing reparatory justice at the UN and the International Court of Justice and identify possible gaps. This could be done in the following four ways:
    1. The General Assembly could request an advisory opinion from the International Court of Justice on the legal question of reparatory justice for histories and legacies of colonialism and enslavement.
    2. To clarify and consolidate the law on reparations the Human Rights Council or the General Assembly could commission an independent and international study, which could be carried out in collaboration with the Committee for the Elimination of Racial Discrimination, relevant special procedures, and an international team of scholars and experts.
    3. A study could also be done by establishing a Human Rights Council Independent International Commission of Inquiry into Reparatory Justice for Haiti and the Caribbean.
    4. Under its Statute, UN organs and specialized bodies and agencies may request the assistance of the International Law Commission, also known as the ILC, to carry out a comprehensive study on the question of reparations. The ILC has already demonstrated interest in the question. As this topic is critical for so many countries and people, we could call on all States to support the initiation of such an ILC study and urge that they speak in favour of this in the Sixth Committee of the General Assembly. We could also use this opportunity to call on the ILC to move the reparations study into its current programme of work and to appoint a special rapporteur with the view to assisting the UN Member States to codify and progressively develop international reparations law.
  3. As has already been mentioned today, reparatory justice is a measure among others of addressing systemic and structural forms of racism—within as well as among countries. Hence, a third recommendation is to include reparatory justice in the development of detailed UN guidelines for a comprehensive and human rights-based approach to addressing systemic racism against people of African descent both within and among countries—including, halting, and reversing the lasting consequences of enslavement and colonialism; ecological justice and sustainable development; and establishing a democratic and equitable international order.
  4. As I just have outlined in this presentation, reparatory justice should be included in the implementation of Agenda 2030, its Sustainable Development Goals, objective of equity and leaving no one behind. Towards this end, I would suggest that the Permanent Forum of People of African Descent coorganize events at, and advise, the High-Level Political Forum on reparatory justice and sustainable development for people of African descent.
  5. As has been proposed by my colleague, Pastor Murillo, the UN could establish a Global Reparations Fund towards implementing the DDPA and addressing the lasting consequences of enslavement, colonialism, apartheid, and genocide.
  6. Another proposal towards facilitating concrete action on reparatory justice and sustainable development is the establishment of a United Nations Global Reparations Commission—which includes Caribbean and African States
  7. Finally, I would suggest that once some of the above steps have been taken, the Permanent Forum of People of African Descent be given the remit to coordinate, together with the Office of the United Nations High Commissioner for Human Rights, a UN Global Summit on Reparatory Justice (maybe fall 2024 or spring 2025).

* Michael McEachrane é ativista internacional pelos direitos humanos dos afrodescendentes, pesquisador em Estudos Negros (Nórdicos e Europeus), em Estudos de Direitos Humanos e em Pós-colonialismo. Dentre suas ações como ativista, cofundou diversas organizações da sociedade civil e esteve profundamente envolvido na Década Internacional dos Povos Afrodescendentes da ONU, no estabelecimento do Fórum Permanente dos Povos Afrodescendentes e no reconhecimento, pela UE, dos direitos fundamentais dos povos de ascendência africana.