A igualdade perante a lei, concebida no contexto das revoluções americana e francesa, como forma de abolição dos privilégios dos nobres em relação à burguesia emergente, exatamente porque objetivou, essencialmente, suportar a idéia de uma neutralidade da ação do Estado em relação aos seus súditos, revelou-se, inversamente ao que se propugnava, como promotora das desigualdades sociais, notadamente, daquelas acirradas pela discriminação e preconceito raciais
Sejam quais forem essas desigualdades, de ordem econômica, cultural ou meramente social, sejam ainda materializadas por qualquer forma de discriminação, em razão da origem, das diferenças fenotípicas, de gênero, ou mesmo em razão da opção sexual etc, é imprescindível que seja assegurado a todos os cidadãos, sem qualquer distinção, a igualdade não somente de oportunidades de participação na sociedade, mas também e principalmente de condições na luta pela ocupação do seu espaço social.
A luta pela efetivação dessa igualdade passa pelo reconhecimento, por parte do Estado, primeiro da condição de hipossuficiencia de determinados grupos sociais em relação a outros grupos, privilegiados historicamente pelas estruturas sociais e instituições públicas sob seu domínio; e, segundo, pela necessidade de buscar-se a superação dessa diferença encontrada, através de medidas que elevem esses grupos inferiorizados a uma condição verdadeiramente emancipatória, traduzida pelo equilíbrio real das relações sociais.
Neste cenário, a discriminação e, em especial, a discriminação racial dirigida aos negros e seus descendentes, deve ser combatida não somente através de políticas normativas que se ocupem da criminalização dessas posturas, mas essencialmente através de medidas que busquem extirpar as causas ou condições sociais que alimentaram e, ainda hoje, alimentam o preconceito racial de cor existente no Brasil.
A desigualdade social no Brasil é escancarada. O abismo entre os que tem muito e os que não tem nada é profundo. E se a situação geral do brasileiro não é das melhores, a situação do negro é pior. Não se pode esquecer que o negro é o elo mais fraco da corrente. Isso ocorre, porque além de sofrer seu jugo como pobre, sobre também seu jugo como negro.
Seja do ponto de vista da história e da historiografia do negro no Brasil, seja em razão dos elementos de sociologia do negro brasileiro, notadamente do tratamento conferido ao negro pela disciplina jurídica, seja em razão das atuais disposições constitucionais, seja ainda, e derradeiramente, em razão do papel primordial do Estado como agente distribuidor, não há como negar a legitimidade do Estado como ente responsável pela promoção das políticas públicas de ação afirmativa.
A legitimidade, anterior, portanto, à legalidade dessas medidas, está fundada tanto nos fatos historiograficamente comprovados, relacionados ao tratamento que o Estado Brasileiro, desde seu período colonial até o presente momento, conferiu ao negro e aos descendentes de africanos, bem como nos estudos sociológicos relacionados ao negro e à sua relação e integração na sociedade brasileira.
A legalidade da promoção das políticas de ação afirmativa também está respaldada pela Constituição Federal de 1988, na sua maior expressão pela promoção do bem de todos, sem preconceitos ou discriminação sob qualquer forma.
A promoção dessas políticas, no entanto, deve ser realizada essencialmente pelo Estado, como responsável pela redução das desigualdades e conflitos sociais. Daí porque essas políticas devem ser eminentemente públicas, ainda que também possam ser realizadas pela iniciativa privada. Até mesmo o incentivo à adoção, por entes privados, de medidas positivas deve ser incentivado pelo Estado.
A utilização, no entanto, dessas políticas de ação afirmativa devem conter em si tanto elementos universalistas, ou seja, que importem em reconhecer o negro enquanto indivíduo ou grupo social integrante de um grupo maior caracterizado por não possuir os meios de produção na sociedade capitalista, e elementos diferencialistas, ou particulares progressivos, que ao mesmo tempo reconheçam a condição do negro enquanto discriminado apenas em razão da sua condição de negro, marcada por seu fenótipo, no Brasil.
Somente a partir da aplicação de políticas públicas de ação afirmativa em benefício dos negros é que eles efetivamente poderão começar a consolidar a sua condição de efetivo cidadão na sociedade brasileira.