O TRATAMENTO DA QUESTÃO DO NEGRO APÓS A CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988

O TRATAMENTO DA QUESTÃO DO NEGRO APÓS A CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988

O TRATAMENTO DA QUESTÃO DO NEGRO APÓS A CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 150 150 Renato Aparecido Gomes

Renato Aparecido Gomes

A promulgação da Constituição Federal de 1988 atendeu várias reivindicações de diversos movimentos sociais, inclusive do movimento negro. Com isso abriam-se as possibilidades para uma legislação ordinária mais profícua em favor do afro-descendente.

A Carta Magna de 1988 estabeleceu como fundamento da República Federativa do Brasil, a dignidade da pessoa humana e ter consagrado como objetivos fundamentais a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, a da erradicação da pobreza, marginalização e redução das desigualdades sociais, além da promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

No capítulo destinado aos Direitos e Garantias Fundamentais, dois incisos do art. 5º merecem destaque, quais sejam os incisos XLI e XLII:

LXI – A lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdade fundamentais;

LXII – A prática de racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à penal de reclusão, nos termos da Lei;

A partir da Constituição de 1988, portanto, as disposições constitucionais corrigiram um dos graves erros cometidos pela Lei Afonso Arinos, definindo a prática de racismo como crime e não mais como contravenção. O racismo passou a ser considerado crime inafiançável, imprescritível e punido com reclusão.

Donde que pode concluir que, se comparado à Lei Afonso Arinos, o avanço legislativo foi evidente. Todavia, a eficácia de tais normas ficou limitada à atuação do legislador ordinário. Na questão do racismo, foi publicada a Lei 7716/89, que definiu diversos tipos para combater as práticas racistas. Posteriormente, a Lei 9459/97, ampliou o sentido da norma anterior para criminalizar também a discriminação e preconceito praticados não somente em razão da cor, mas também de etnia, religião e procedência. No entanto, mais que as garantias de não discriminação, o que se tem por meio da criminalização da prática do racismo e da discriminação racial, a Constituição possibilitou atacar o problema da desigualdade racial existente no Brasil mediante a elaboração de normas que permitam aos negros acessar efetivas oportunidades de empregos, à educação, além de preservar as suas características enquanto grupo e valorizar essas características junto à sociedade. A Constituição permitiu que o Estado pudesse atuar de forma efetiva na integração do negro na sociedade. Permitiu, assim, entre outras coisas, o resgate de sua auto-estima enquanto negro e sujeito histórico.

Essas medidas legislativas revestem-se de um caráter público e de relevância nacional, uma vez que objetivam atender os 46% da população brasileira que oficialmente se declararam negros no censo realizado pelo IBGE. É de se destacar que tais dados são fruto de uma pesquisa em que os afro-descendentes são considerados como pertencentes a esse grupo na medida em que se autodeclaram como afro-descendentes. Uma vez que o passing no Brasil é facilitado, não seria de impressionar se o número de afro-descendentes fosse percentualmente maior que o divulgado oficialmente IBGE.

A efetivação dessas políticas públicas pelo Estado Brasileiro deveria realizar-se mediante a incorporação, em seus textos legislativos, de dispositivos capazes de buscar a extinção das causas desses conflitos sociais.

Ao Direito, na sua expressão legislativa e enquanto instrumento do Estado, caberá o papel transformador de buscar afirmar a negritude como elemento importante dos negros para a formação da sociedade brasileira, não para hierarquizá-lo em detrimento de qualquer outro grupo que componha essa mesma sociedade, mas para que os negros possam resgatar a sua auto-estima e sentir orgulho de ser negro.

Essas normas com conteúdo mais humanizado, no tratamento de questões relacionados aos negros, devem outorgar benefícios para essa população, com especial atenção para a população mais pobre. As normas de conteúdos mais técnicos, como aquelas de criminalização de comportamentos racistas, devem dar lugar a medidas positivas que ao emancipar os grupos sociais, em especial, o negro, com o tempo reduzirá as práticas racistas tratadas como crime. A eliminação do racismo ocorrerá não por meio de sua criminalização, mas por meio da educação, respeito, reconhecimento e convivência entre todos os grupos componentes da sociedade brasileira.

Os conteúdos primários, de cunho econômico e social, acompanhados de medidas que apontem para uma transformação da realidade vivenciada pela população negra, até então desprezados, deve ser buscado, em detrimento do formalismo que, aliado à técnica da profissão jurídica, mascara de forma eficaz o velho objetivo ideológico da dominação política. Mas esses conteúdos primários não devem ser adaptados aos interesses de grupos conservadores capitalistas, sob pena da distorção dos fins originalmente colimados, serem substituídos por objetivos perversos.

É o que pode ocorrer se a promoção de políticas públicas de ação afirmativa se prestarem silenciosamente à uma nova forma de de embranquecimento da população negra. Embora o tratamento relativo às políticas públicas de ação afirmativa vá ser realizado com maior cuidado em capítulo próprio, vários são os questionamentos que se pode deduzir sobre o tema, principalmente quando se observa que a discussão concentra-se apenas sobre um tipo de política de ação afirmativa, qual seja, a política de cotas. Porque essa restrição, e a que ela se destina e a quem ela interessa? O que está por traz dessa limitação? Quais são os objetivos verdadeiramente pretendidos? A quem essas políticas se destinam? Corrigirão efetivamente as desigualdades sociais? Importam numa medida de transformação social? Essas são algumas indagações importantes que iremos comentar em outra oportunidade.

Renato Aparecido Gomes é bacharel em Direito e mestre em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, doutorando em Direitos Humanos pela Universidad Pablo de Olavide: Sevilla – Espanha. Foi Membro da Comissão de Estudos da Concorrência e Regulação Econômica da OAB/SP – 2004 a 2006. Atualmente, é Vice-Presidente do Instituto Luiz Gama, advogado, Membro da Academia Brasileira de Direito Tributário (ABDT), professor em São Paulo na Universidade São Judas Tadeu, na Universidade Nove de Julho e na Pós-Graduação do Instituto de Ensino Jurídico Luiz Flávio Gomes.