Alguns apontamentos sobre a sociologia do negro no Brasil

Alguns apontamentos sobre a sociologia do negro no Brasil

Alguns apontamentos sobre a sociologia do negro no Brasil 150 150 Renato Aparecido Gomes

Com o fim do sistema escravista em 1888 e a proclamação da república em 1891, uma questão até então não crucial, apareceu e teve de ser resolvida: era necessária a construção de uma nação, sendo imperioso indagar: como transformar os ex-escravos negros em elementos constituintes da nacionalidade e da identidade brasileira? Dentre as dificuldades relativas à inserção dos negros neste contexto, estaria o fato da “estrutura mental” herdada do longo período de escravidão do negro africano, fazer o cidadão brasileiro branco considerar o negro ou seus descendentes apenas como coisa, como objeto, como força ”animal” de trabalho.

Durante quase quatrocentos anos o negro foi objeto útil de compra e venda, sujeito à hipoteca. Conforme classificação de Teixeira de Freitas, Consolidação das Leis Civis (1858), os escravos pertenciam à classe dos bens móveis, ao lado dos semoventes. (PRUDENTE, 1988, p.137)

A pluralidade racial nascida do processo colonial representava, para a elite branca, uma ameaça e um grande obstáculo à construção de uma nação que se pensava branca. Daí porque a raça tornou-se o eixo do grande debate nacional que se travava a partir do final do século XIX e que repercutiu até meados do século XX.

Após a política do branqueamento, para impedir, ou pelo menos minimizar a ocorrência de conflitos raciais motivados pela exclusão total dos negros ex-escravos e seus descendentes, buscou-se a construção de uma identidade nacional do brasileiro, cujo objeto ideal e pretendido era a mestiçagem. Em nome da construção dessa identidade nacional, que visava a construção de um sentimento de nação entre todos os brasileiros, os negros tiveram usurpados elementos de sua tradição enquanto grupo, que acabaram sendo transformados em elementos nacionais, vale dizer, foram generalizados.

Culinária, música e esporte são algumas das áreas em que elementos de grupo, forjados nas senzalas pelas diversas nações de negros submetidos ao mesmo jugo infeliz, foram tomados e transformados em nacionais.

Tal qual a política de branqueamento, a construção da identidade nacional acabou favorecendo o estabelecimento de duas conseqüências: 1) de um lado, impediu a formação de um grupo unificado e coeso de negros que pudesse pleitear o seu lugar na sociedade; 2) de outro lado, ao generalizar os elementos de grupo, tornando-os elementos próprios da mestiçagem, embranqueceu-os. O resultado dessa política foi que o negro, paulatinamente, foi perdendo sua identidade enquanto grupo e, por via de conseqüência, sua identidade individual ao mesmo tempo em que assimilava os elementos da cultura branca européia.

A identidade, segundo HALL (2001, p. 256), resulta da interação entre indivíduo e sociedade, de modo que ao mesmo tempo em que o universo pessoal do indivíduo é projetado na sociedade, ele internaliza os “significados e valores” que a sociedade lhe oferece. Desse modo, o indivíduo constrói seu modo de agir e de se relacionar com sua comunidade. Esse processo é iniciado a partir dos conhecimentos adquiridos durante a trajetória pessoal de vida de cada indivíduo e vai se constituindo na relação entre indivíduo e coletividade. A identidade coletiva permite aos grupos diferenciar-se dos demais, intermediando os relacionamentos internos, entre os membros do próprio grupo, e externos, quanto ao relacionamento com outros grupos.

CASTELLS (1999, p. 24), por sua vez, esclarece que são as relações de poder que determinam a construção social da identidade. Com base nisso ele define três tipos de identidades: a) a identidade legitimadora, em que as instituições exercem seu domínio em relação aos “atores sociais”; b) a identidade de resistência, desenvolvida por grupos excluídos, desvalorizados pelos grupos dominantes, e que teria por objetivo criar estratégias de sobrevivência na sociedade excludente, a partir de “valores distintos ou mesmo opostos aos que permeiam as instituições da sociedade”; e, c) a identidade de projeto, em que os indivíduos ou grupos excluídos, buscam a redefinição de sua posição social, através da redefinição de sua identidade, utilizando-se para isso dos materiais culturais a que tem acesso. Essa redefinição social seria ainda, geradora de transformações sociais(O poder da Identidade é o segundo de três volumes da obra A Era da informação: Economia, Sociedade e Cultura de Manuel Castells, onde o autor espanhol trata a identidade como uma das tendências que moldam o mundo de hoje. A partir da análise de movimentos sociais como o feminismo, o movimento gay e de movimentos conservadores como o nacionalismo e o fundamentalismo religioso, CASTELLS discute a “crise do Estado-Nação”, que teria sido gerada pelo conflito entre as identidades coletivas advindas desses movimentos e as “forças tecno-econômicas”. Segundo o autor, a transformação do capitalismo e o fim do estatismo teriam sido os responsáveis pela explosão de identidades coletivas no século XX).

CASTELLS (1999, p. 24), considera, ainda, que a “identidade de resistência” talvez seja a mais importante dos três tipos, por permitir o agrupamento dos indivíduos excluídos em torno de um ou de diversos “elementos identificadores”, o que possibilita ao grupo, lutar contra as possíveis desigualdades e injustiças sofridas.

Não é por outro motivo que neste período (primeira metade do século XX) o movimento negro, nos grandes centros urbanizados do Brasil, apregoava a inclusão do negro na sociedade por meio da assimilação, pelos negros, de todas as características impostas pela sociedade branca e capitalista. Buscava-se construir uma “imagem positiva” dos negros através da incorporação de elementos da cultura oficial, visando contrariar as teorias cientificistas do século XIX, que afirmavam ser o negro era inferior por ser incapaz de se civilizar. Para o combate a essas afirmações e luta pela sua inserção na sociedade, o negro, organizado como movimento, e com apoio de uma “imprensa negra”, adotou como bandeira civilizar o povo negro especialmente em relação aos padrões e estruturas próprias do capitalismo. A assimilação desses padrões se fez sentir em diversos espaços sociais, desde a família até a educação e o trabalho, ou ainda, da construção de sentimento de amor à pátria. Particularmente, a educação foi considerada o principal veículo para a realização da assimilação, pelo negro, da cultura branca. A idéia recorrente foi a de que a educação era o principal meio através do qual o negro venceria a discriminação e a marginalização.

A política e a ideologia do branqueamento exerceram uma pressão psicológica muito forte sobre os africanos e seus descendentes. Foram, pela coação, forçados a alienar sua identidade transformando-se cultural e fisicamente em brancos. MUNANGA (2004, p. 103)

Às políticas públicas do branqueamento e da formação da identidade nacional, agregou-se a idéia da democracia racial no Brasil. Segundo esse pensamento, o Brasil, por ter sido constituído pela conjunção das três raças básicas que formaram o seu povo: branco, índio e negro; teria conseguido construir uma democracia racial na sociedade, razão pela qual, essas raças conviviam pacificamente.

Essas idéias apenas colaboraram para mascarar o preconceito racial existente na sociedade brasileira, em especial aquele praticado pela elite branca. A execução de sua concepção ofereceu a um número, pequeno, de negros a possibilidade de integração na sociedade oficial, desde que via seu embranquecimento (Por embranquecimento estamos considerando o conjunto de políticas que buscaram evitar a formação de um ideário negro, dentre as quais se destacam as políticas do branqueamento e da construção da identidade nacional, além do mito da democracia racial).  Objetivava-se com isso, perpetuar o mito e, por conseqüência, amainar os ânimos da comunidade negra mais preparada, seja intelectualmente, seja financeiramente.

(…) a ascensão de elementos de cor ou pressupõe ou se faz acompanhar do cruzamento com elementos brancos, seja qual for a origem deles. (…) Em conseqüência, cada conquista do negro ou mulato que logra vencer econômica, profissional ou intelectualmente tende a ser absorvida, em uma ou duas gerações, pelo grupo branco, através do branqueamento progressivo e da progressiva incorporação dos descendentes a esse grupo. (NOGUEIRA, 1985, p. 238)

Esse branqueamento, cuja passagem do “considerar-se negro” para o “considerar-se branco” (passing), no Brasil é mais fácil que nos EUA (Nos EUA o negro é todo aquele que tem sangue negro, ainda que tenha pele branca em vista do princípio one drop rule. O preconceito, portanto, é de origem. No Brasil, invariavelmente, considera-se negro quem carrega efetivamente a cor escura na pele. Exatamente por isso é que, no Brasil, não importa se o sangue é negro. O negro clarinho, o mulatinho, muito facilmente é aceito e considerado como branco, bastando, em muitos casos, que ele próprio se proclame branco. São os casos de Machado de Assis, José de Alencar e mesmo recentemente, do jogador de futebol Ronaldo Fenômeno, que emitiu declaração neste sentido em entrevista a um jornal esportivo), v.g., dificulta a percepção de identidade coletiva entre os negros, em especial nas suas bases populares, sem o qual uma verdadeira consciência de luta torna-se quase impraticável.

Neste ponto é importante destacar que o preconceito racial no Brasil é de marca, como bem aponta NOGUEIRA (1985, p.78/79):

Considera-se como preconceito racial uma disposição (ou atitude) desfavorável, culturalmente condicionada, em relação aos membros de uma população, aos quais se têm como estigmatizados, seja devido à aparência, seja devido a toda ou parte de ascendência étnica que se lhes atribui ou reconhece. Quando o preconceito de raça se exerce em relação à aparência, isto é, quando toma por pretexto para as suas manifestações os traços físicos do indivíduo, a fisionomia, os gestos, o sotaque, diz-se que é de marca; quando basta a suposição de que o indivíduo descende de certo grupo étnico para que sofra as conseqüências do preconceito, diz-se que é de origem.

Daí que a permissibilidade da integração do mulato na sociedade formal branca acabou por facilitar as pretensões da ideologia (Por ideologia, partilhamos das observações feitas por CHAUÍ (2003, p. 08): “(…) a ideologia é um ideário histórico, social e político que oculta a realidade, (…) esse ocultamento é forma de assegurar e manter a exploração econômica, a desigualdade social e a dominação política.”) de inferiorização da população negra, ainda que a maioria dos negros e seus descendentes continuassem a viver em condições de pobreza alarmantes, e sob condições de racismo tão eficientes quanto veladas.

A eficiência deste argumento ideológico é tão grande que a tarefa de combate a essa política de branqueamento físico e cultural exige luta árdua, em vista dos seus ideais terem permanecido intactos no inconsciente coletivo brasileiro. Constata MUNANGA (2004, p. 103) que, esse ideal acaba por prejudicar “qualquer busca de identidade baseada na “negritude” e na “mestiçagem”, já que todos sonham ingressar um dia na identidade branca, por julgarem superior”.

Diversos, portanto, foram os argumentos (artifícios) que compuseram a ideologia de justificação e afirmação da inferioridade do negro, e por via de conseqüência de afirmação da superioridade do branco. Apenas para não deixamos de citar, destaquemos, pela sua dimensão, a posição da Igreja Católica que, segundo VALENTE (1994, p. 30), propagava a crença de que os negros, descendentes de Cam, já eram escravos na própria África e, ademais, estariam sujeitos aos costumes mais bárbaros e inúmeras superstições, fazendo-se necessário levar até eles, “a palavra salvadora do evangelho”. Este não era o único argumento sagrado. Alguns defendiam que os negros eram descendentes diretos de de Caim, amaldiçoado por ter matado Abel (alías, o primeiro assassino da história!), e exatamente por isso, condenados por Deus a eternamente carregar o sinal da sua maldição, o que no caso, teria sido a cor escura da pele. Como maldito, merecia a escravidão.

Outros argumentos também cuidaram de propagar a pretendida ideologia de inferiorização dos povos negros africanos e também dos índios, é bom lembrar, como a de que os negros eram bárbaros, não civilizados (segundo os modos europeus). Até metade do século XX, muitos estudiosos defendiam que os negros somente foram escravizados porque não resistiram à sua escravização pelo branco europeu, como resistiu, por exemplo, o índio encontrado no território brasileiro. Segundo tais estudiosos os negros eram mais “mansos e pacíficos”.

Esse conjunto de idéias (ideologia), contudo, não escondia e não esconde o verdadeiro motivo de toda a campanha de inferiorização do negro. O que ela buscava formar era ambiente suficientemente capaz de, como observou FERNANDES (1955, p 11), justificar o trabalho escravo, base do modo de produção implantado no Brasil Colônia, e cujos reflexos se fez sentir nos períodos posteriores da história brasileira.

Os intelectuais brasileiros também contribuíram para a consolidação e justificação do preconceito de cor velado. MOURA (1990, p. 213) destaca que os primeiros intelectuais que trataram da questão do negro, apesar das diferenças de posicionamentos entre eles, concordavam em uma coisa: a visão de que os negros, assim como os índios e mestiços em geral, seriam elementos bárbaros pagãos, gentios sem capacidade civilizadora, ao passo que os brancos, aqueles mesmos detentores das estruturas de poder, seriam os elementos que impulsionaram a nossa sociedade à efetiva civilização.

Eis já aí o caráter eminentemente racista e ideológico reproduzido pela intelligentsia nacional. Segundo tais estudiosos, os negros não tinham condições de dirigir a sociedade e, seja pela determinação divina, seja por outra razão mais agnóstica, eles estariam condenados a servirem como massa domada e dominada pelos brancos, únicos detentores do poder e dos privilégios raciais tanto do mundo real e como do mundo sagrado.

Tais pensadores tinham sido contaminados pelas teorias evolucionistas, ditas científicas, que procuravam demonstrar que o negro fora escravizado e dominado na África por razões de ordem biológica, vale dizer, por se encontrarem no último degrau da escala da evolução, razão pela qual, o seu cérebro assim como seu equipamento psicológico e moral, não possuía condições de acompanhar o processo civilizatório. Todo esse conjunto de idéias era alimentado pelo mesmo senhor: o capitalismo em expansão.

Para justificar essa fase do capitalismo, a antropologia colonialista, que adquirira status de ciência, justificou cientificamente o que antes era justificado “apenas” pela bíblia, ou mesmo por razões morais ou competições locais. Essa ciência possibilitou a racionalização do racismo transferindo o enfoque do discurso, que até então habitava apenas um campo entre “fundamentos” teológicos ou “opiniões” empíricas, para o campo ideológico da hierarquização das raças.

Segundo essa nova concepção ideológica, a discriminação racial, materializada na identificação do negro como inferior, assim como os demais povos não-europeus, “fundamentava-se” nas razões biológicas que permitiram a classificação das populações do mundo, segundo uma lógica pensada como universal. Daí porque essa superioridade racial autorizaria as atrocidades cometidas pelos nazistas, além de também autorizar o expansionismo econômico e cultural de alguns povos que se julgam superiores aos demais, quaisquer que sejam as razões que usem para fundamentar esse entendimento, sejam puramente messiânicas, sejam imperialistas.

Essa ideologia, como destaca MOURA (1990, p. 214), tem por função “dar respaldo a projetos de exploração de um povo militarmente mais forte sobre outro mais fraco”, de forma que uma das funções do racismo moderno, na nossa contemporaneidade, é racionalizar a permanência do capitalismo, bem como sua expansão sobre outros povos.

No Brasil, em especial, essa ideologia serviu e serve ainda para discriminar, vale dizer, encontrar diferenças para, a partir daí hierarquizar os grupos sociais segundo um grau arbitrariamente atribuído de inferioridade ou superioridade, e impedir que as raças classificadas como inferiores, como o negro, pudessem transpor as fronteiras sociais. Serviu, desse modo, para transformar a sociedade brasileira numa sociedade estruturada segundo uma ordem estamental, onde a mobilidade social do negro é muito difícil e, quando realizada, se faz por conta da atuação do negro como integrante de alguma estrutura criada para entretenimento do branco – caso mobilidade social proporciona aos negros por conta de sua atuação como artistas ou esportistas.

Os estudos sobre o negro brasileiro, nos seus diversos aspectos, têm sido mediados por preconceitos acadêmicos, de um lado, comprometidos com uma pretensa imparcialidade científica e, de outro, por uma ideologia racista racionalizada, que representa os resíduos da superestrutura escravista, e, ao mesmo tempo, sua continuação, na dinâmica ideológica da sociedade competitiva que a sucedeu. Queremos dizer, com isso, que houve uma reformulação dos mitos raciais reflexos do escravismo, no contexto da sociedade de capitalismo dependente que a sucedeu, reformulação que alimentou as classes dominantes do combustível ideológico capaz de justificar no peneiramento econômico-social, racial e cultural a que ele está submetido atualmente no Brasil através de uma série de mecanismos discriminadores que se sucedem na biografia de cada negro. MOURA (1988, p. 17).

No referido estudo, MOURA (1988, p. 18) constata, ainda, que os primeiros pensadores brasileiros que se dedicaram à questão do negro acabaram mais por colaborar com o pensamento racista imbricado no subconsciente coletivo, que para condenar o racismo ou mesmo transformar a realidade social brasileira. Após análise de diversos autores (Perdigão Malheiro, Nina Rodrigues, Arthur Ramos, Gilberto Freyre e Oliveira Vianna), constatou que os estudos realizados pelos dois primeiros, se alinhavam com as concepções européias do evolucionismo para considerar que o negro era a causa do atraso do Brasil. Os dois seguintes tentaram elaborar uma interpretação social da questão do negro, devendo ser destacada a interpretação realizada por Gilberto Freyre através da categorização de Casa Grande e Senzala, ambientes em que as relações entre brancos e negros eram travadas por “senhores bondosos e escravos submissos”. Já Oliveira Vianna, era mais radical. Defendia que o esclarecimento das oligarquias nacionais somente ocorreria na medida de sua arianização. Todos tentaram através de seus estudos justificar o atraso social brasileiro, acenando como causa principal dessa desgraça, a existência de um contingente bastante grande de negros no país.

MOURA (1988, p. 25/29) evidencia que até a literatura desse tempo acabou por veicular o racismo arraigado da sociedade brasileira. Do romantismo ao modernismo, os autores sempre apresentaram as personagens negras como anti- herói, criminoso, subalterno e obediente “quase que ao nível de animal conduzido por reflexos” (MOURA, 1988, p. 26). Até mesmo Euclides da Cunha, a exemplo de Silvio Romero, teria sido contaminado pela ideologia do seu tempo, categorizando os negros e mestiços como inferiores. No período, a única exceção ficou por conta de Castro Alves, que humanizou o negro, retirando-lhe a pecha de besta de carga, ou indolente criminoso. Mas, com exceção de Castro Alves, somente a partir de Lima Barreto o negro readquire sua dignidade como personagem ficcional, como ser humano na sua individualidade. Após Lima Barreto, somente a partir de 1930 é que o negro volta a aparecer na literatura, sem ser retratado como besta-exótica sem sentimentos. Exceção seja feita de Macunaíma, de Mário de Andrade. As obras que voltaram a tratar o negro como ser humano foram: Moleque Ricardo, de José Lins do Rego, e Jubiabá, de Jorge Amado, ainda que nelas o negro apareça como uma “roupagem folclorizada”.

O preconceito racial e a discriminação daí decorrente é evidente neste período compreendido entre a segunda metade do século XIX e o início da primeira metade do século XX. Somente após a segunda guerra mundial é que esse conjunto ideológico de justificação da suposta inferioridade do negro começa a ser desmantelado no Brasil. Com o financiamento, pela UNESCO, de pesquisas sobre a democracia racial a que, supostamente, o Brasil teria alcançado, a desigualdade social e exclusão da população negra discriminada, acabou por ser escancarada. MOURA (1988, p. 31) esclarece que, foram os estudos de Florestan Fernandes e Roger Bastide, na cidade de São Paulo, assim como os de Costa Pinto, no Rio de Janeiro, e de Thales de Azevedo, na Bahia, que provocaram uma reordenação teórica e metodológica por parte dos cientistas sociais brasileiros relativamente à questão do negro. Dentre os principais estudiosos que participaram dessa reordenação, estavam Florestan Fernandes, Octávio Ianni, Emília Viotti da Costa, L.

A. Costa Pinto, Clovis Moura, Jacob Gorender, Lana Lage da Gama Lima, Luís Luna, Décio Freitas, Oracy Nogueira, Joel Rufino dos Santos, Carlos Hasembalg, entre outros. Todos eles empreenderam estudos buscando uma revisão tanto do passado escravista, como também do presente racial, social e cultural das populações negras do Brasil.

Ainda que esses autores brasileiros tivessem discordado sobre alguns pontos, havendo até o alinhamento de dois grupos de pensamentos: as escolas paulista e bahiana de sociologia, todos eles partiram para uma revisão dos conceitos relacionados à realidade racial brasileira. Apenas para não deixar de citar, cumpre destacar que a distinção entre as escolas paulista e bahiana, estava no fato de que os paulistas, “liderados” por Florestan Fernandes, consideravam o problema do negro sempre atrelado ao preconceito de cor existente na sociedade, enquanto os bahianos, dentre os quais merecem destaque Nina Rodrigues e Guerreiro Ramos, considerava que os problemas vivenciados pelos negros estavam mais ligados à sua pobreza do que efetivamente ao preconceito racial.

A esse respeito, GUIMARÃES (1999, p. 94/95) realiza os seguintes apontamentos:

Num dos pólos do debate, esteve a concepção de sociedade multirracial de classes, de Pierson; no outro pólo, esteve a interpretação de Fernandes, de permanência de uma ordem estamental na sociedade burguesa brasileira, a que ele se referiu como “persistência do passado” ou, em outros momentos, como “metamorfoses do escravo”. Donald Pierson, apesar de pesquisador meticuloso, que emprestava mais valor à descrição que à hipótese, foi sem dúvida um dos que se prendeu, de modo mais radical, a certos conceitos teóricos. Suas concepções de “classe” e de “preconceito racial” permaneceram imutáveis durante toda a sua militância disciplinar no Brasil. Assim como sua negativa em considerar como preconceito racial a discriminação sofrida pelos negros, ou como grupo racial o movimento político negro. Fizeram companhia a Pierson na negação do preconceito e das raças no Brasil, Charles Wagley, Marvin Harris e, mais tarde, Pierre van den Berghe (1994). Costa Pinto, Bastide e Florestan, além de Oracy, afirmaram sempre o preconceito brasileiro. Thales de Azevedo sedimentou essa opinião ainda nos anos 50, modificando substancialmente a compreensão que tinha, de início, das relações raciais no Brasil.

A partir da revisão de tais conceitos é que o problema do negro começou a ser desmascarado, sendo apresentado na sua crueza. Contudo, atingiu e continua atingindo apenas uma parte da academia.

É de se notar que referido movimento de revisão partiu de ciências sociais como história, sociologia, antropologia, e até se fez presente na biologia que reviu as teorias evolucionistas racistas do fim do século XIX e início do século XX. Mas tais revisões pararam por aí, não atingiram outras disciplinas acadêmicas, como o Direito, por exemplo.

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