O Instituto Luiza Gama (ILG) publica a seguir uma entrevista com o professor Marcelo Gomes Franco Grillo, na qual ele explica a teoria jurídica de um dos filósofos contemporâneos mais destacados – e talvez o mais famoso da atualidade: o esloveno Slavoj Žižek, docente e pesquisador na Eslovênia e professor convidado das mais importantes universidades estadunidenses, autor de inúmeras obras – traduzidas no mundo inteiro, inclusive no Brasil – nas quais trata de diversos temas, como política, artes, direito e religião, sempre com um viés crítico e reflexões ousadas. O professor Marcelo Grillo, obteve título de mestre em Direito Político e Econômico pela Universidade Mackenzie apresentando dissertação a respeito do pensamento jurídico Slavoj Žižek, estudo este que serviu de base para seu livro (editora Alfa-Ômega) sobre o filósofo esloveno. Aqui ele destaca algumas de suas impressões e conclusões.
ILG: É possível dizer que uma das grandes contribuições de Žižek para o estudo do Direito é sua crítica à abordagem positivista do Direito. Como sintetizar os pontos fundamentais dessa crítica?
Marcelo Grillo: Slavoj
Žižek se opõe ao positivismo jurídico de forma contundente e clara. Ele
coloca a questão do hábito – tomando-o como um dado instintivo no homem
–, como sendo a marca da aplicação da lei. Essa aplicação ocorre sem a
preocupação da justiça do ato de aplicar a lei e, mais sintomaticamente,
sem a preocupação da justiça da lei aplicada. A subsunção da lei ao
caso concreto é um ato automático, sem procurar saber de sua justeza.
A
lei, simplesmente aplicada – eis a maior preocupação dos aplicadores do
Direito. O jurista se resume a ser um verdadeiro autômato. Sua
operação, muitas vezes, é quase que matemática. Quando muito, em um
aprofundamento teórico, o jurista procurará os fundamentos hermenêuticos
da aplicação da lei; não divergir da lei. Poucos são os pensadores do
Direito que contestam a própria lei; estão a procurar, por um olhar
crítico, a fundação do ordenamento jurídico, de uma determinada lei ou
de certa decisão judicial. Žižek, justamente por relacionar o instinto
do hábito ao positivismo, neste ponto, também, é muito singular.
A
aplicação do Direito sem contestar o próprio Direito decorre de um
hábito, arraigado na sociedade moderna. Essa mesma sociedade que, na
atualidade, pode ser definida como técnica e preocupada com a
eficiência.
ILG: Žižek desenvolve críticas contundentes ao Direito e à Democracia. É possível pensar, a partir de seu pensamento, em um definhamento do Direito? Quais os principais aspectos da crítica do esloveno à democracia atual?
Grillo: Žižek é exato e
atual na leitura que faz da Democracia. Sua interpretação da Democracia
destoa das vozes políticas e jurídicas da atualidade, aquelas que
marcam o tom, no mesmo compasso do neoliberalismo.
Žižek, de fato, é
atual justamente porque compõe o axioma da Democracia contemporânea, sua
condição inerente de ser a partitura da economia globalizada. Então, se
é possível pensar em um definhamento do Direito, a partir da
democracia, diríamos que sim!
Há muito se sabe que o Estado
Democrático de Direito – o Estado constitucional – acompanha um
movimento histórico da sociedade. Há quase que uma Constituição real que
se forma antes mesmo da Constituição jurídica. O Poder Constituinte é
um poder em processo. Dados históricos – econômicos, políticos e sociais
– desenham, em um primeiro momento, a estrutura do Estado. Estado
Liberal, Estado Social e Estado Neoliberal espelham suas democracias e
suas democracias espelham sua textura jurídica. O que temos de
democracia, na atualidade, provém das bases econômicas do capitalismo,
mas também de uma ideologia. Acusar essa ideologia neoliberal é o que
faz Žižek.
Defender a democracia contemporaneamente, em um tempo sem
crítica, é defender o capitalismo neoliberal, globalizado e financeiro.
E, com todas as particularidades e especificidades da superestrutura no
mundo atual, o sistema jurídico se compromete de maneira muito evidente.
Mas,
não só em acusar um definhamento do Direito, Žižek contrariamente a
esse discurso, percebe a estrutura especifica do direito que sempre, no
capitalismo, foi um equivalente da forma mercantil.
ILG: Žižek desenvolve
críticas cortantes quanto aos temas da cidadania e dos Direitos Humanos.
É correto afirmar que Žižek se coloca em uma contratendência, ao
conceber cidadania e Direitos Humanos como incapazes de promover uma
“humanização universal”?
Grillo: Neste ponto, a pergunta novamente
foi muito feliz, ao lembrar a contracorrente que significa o pensamento
de Žižek frente à cidadania e os Direitos Humanos. De fato, os Direitos
Humanos não demarcam uma humanização universal, não trazem aos homens a
condição mínima e mais pura de humanidade, o que só poderia existir, há
muito se sabe, pela divisão material dos bens, pela mudança dos meios de
produção do homem.
Os Direitos Humanos, pela crítica do autor
esloveno, são uma dádiva sem critério predeterminado e universal. Daí,
até poder-se-ia relacionar Direitos Humanos com Geopolítica. Žižek
afirma que os EUA, quando procedem às ajudas humanitárias em países
necessitados, com fundamento nos Direitos Humanos, sua escolha é
aleatória, ou, o que é mais grave ainda, baseada na sua Geopolítica. A
crítica aos Direitos Humanos não é no campo jurídico, porém, político. O
que o filosofo esloveno afirma é que os Direitos Humanos são utilizados
como um discurso de legitimação de decisões aleatórias ou pautadas em
uma política internacional unitária. Em diversos assuntos, os EUA
descumprem a Declaração Universal dos Direitos Humanos e, em outros,
defendem suas causas. Žižek indaga sobre a escolha da ajuda humanitária
americana, perguntando o porquê de eles selecionarem os albaneses na
Sérvia e não os palestinos, em Israel, e assim por diante. Não há
critério de aplicação universal da ajuda humanitária. Mas isso não
significa, para Žižek, desconsiderar os ganhos históricos que foram
decorrentes das lutas pelos Direitos Humanos. Por isso, para os Direitos
Humanos, suas análises se mantêm no quadrante da Geopolítica.
Referente
à cidadania, a crítica žižekiana está igualmente no patamar da crítica
ao sistema político. Atualmente se tem o atributo da cidadania formal,
mas nem todas as pessoas têm a cidadania material. O exercício de todos
os direitos, ligados à cidadania, não ocorre uniformemente, uma vez que
não estão desvinculados das condições materiais de existência.
Ainda,
o cidadão é apenas parcela de uma lógica democrática comprometida aos
interesses da política globalizada, na perspectiva do nosso autor.
ILG: Em determinadas passagens da obra de Žižek, fala-se que o Direito “suspende” a verdadeira política. Em seu trabalho, você fala de uma aproximação entre Carl Schmitt e Žižek, entre Ética e Política. Você poderia falar um pouco dessas relações?
Grillo: A relação entre
Direito e política é exemplificadora para ilustrar a tecnicidade da
sociedade atual. A política, em tempos contemporâneos, é exercida
visando substancialmente essa técnica jurídica. O capitalismo deixou
esquecido o papel grego da política. Em uma das passagens do livro
“Estado de Exceção”, Giorgio Agamben alude que a política foi
contaminada pelo Direito e, no melhor dos casos, aparece como Poder
Constituinte (“violência que põe o Direito”), quando não diz respeito ao
poder de negociar com o Direito.
Žižek é partidário da tese de
revalidação do ato político, pela suspensão da ordem vigente. O Estado
de exceção para Žižek é a possibilidade de suspender as coordenadas
existentes e possivelmente recolocar a política no centro da vida
humana, como o foi, na Grécia antiga. Exatamente, aqui, está o vínculo
entre Estado de exceção, Ética e política. A suspensão da ordem atual,
negando a Ética pós-moderna, para restabelecer uma noção de política que
seja mais próxima da grega – eis um dos baluartes de Žižek.
ILG: Sabe-se que o nosso esloveno parte de Lacan, e não de Freud, quanto às análises psicanalíticas. No que tange ao gozo na sociedade de consumo, é possível pensá-lo em uma relação com o Direito contemporâneo?
Grillo: Aqui reside um
dos temas mais fascinantes e difíceis de compreender na filosofia de
Žižek. Ele não trata diretamente das proposições do gozo no seu aspecto
jurídico. O que Žižek faz – conforme dito anteriormente – é unir a falta
de universalidade formal da lei ao gozo, como uma nova camada do
princípio de realidade, do superego. Isso é exemplar, nos Estados
totalitários, onde a aplicação da lei ocorre à vontade dos comandantes,
sem universalidade formal.
Mas, a partir da ligação gozo, superego,
não universalização formal da lei (pelo menos, conforme conhecida no
Estado liberal) e sociedade de consumo, já é possível propor teoria
jurídica, respaldada, na Psicanálise de tradição lacaniana, com diálogos
correntes com os mais avançados pensadores, tais quais Žižek e, no
Brasil, Vladimir Safatle.
O que nós propugnamos, nessa linha de
pensamento, é que a mudança do capitalismo industrial para o capitalismo
financeiro, da sociedade de produção para a sociedade de consumo,
representa, no campo do Direito e da Psicanálise Social, uma ponte que
liga Freud a Lacan e, por exemplo, Escola de Frankfurt à Žižek, com
visíveis implicações teóricas.
A sociedade de produção precisava ter
um sistema jurídico rígido. Tanto é assim, que o liberalismo, até o
advento do Estado social, tinha no poder legislativo e no dogma da lei, a
grande bandeira jurídica. Por isso, exalta-se a segurança jurídica, a
ideia, pós-Revolução Francesa, de que na claridade cessa a interpretação
(In Claris Cessat Interpretatio) e de que o juiz é a boca da lei (C’est
la bouche qui prononce les paroles de la loi). Nessas sociedades, o
superego representa um Direito Universal, objetivo e impessoal, ao
máximo.
Com o crescimento da sociedade de consumo, na fase conhecida
como capitalismo financeiro, a universalidade jurídica, o dogma da lei e
da segurança jurídica tendem a ser flexibilizados, não suprimidos. No
Direito, vemos, na atualidade, a mudança de importância do Poder
Judiciário; se antes, só cabia a ele interpretar, ser a boca da lei,
hoje, sua importância na criação do Direito é materialmente maior,
veja-se, o exemplo das súmulas vinculantes. Também vemos uma
diferenciação na universalidade do Direito, no que se refere aos
Juizados Especiais e a Lei de Arbitragem. Toda essa modificação
paradigmática do Direito tem relação direta com a satisfação de um tipo
de sociedade que está mais preocupada com o consumo e com o prazer
representado pelas formas da Economia capitalista e da produção cultural
atual.
Justamente, como contraponto do id, o superego não tem mais,
como único fator, a repressão. Ao lado do princípio de prazer, o
princípio de realidade é representado pela ideia de gozo, na acepção
lacaniana. À princípio, essas são algumas das relações que se pode fazer
da Psicanálise lacaniana com o Direito e a sociedade de consumo.
ILG: Em que medida é possível dizer que Žižek é um autor pós-moderno? E em que medida é possível falar de Žižek, enquanto marxista?
Grillo: Essa também é
uma questão muito interessante, apesar de muitos pensadores, em
especial, da Filosofia, repudiarem uma classificação nesses termos, para
explicar a História. Fato é que a época atual tem particularidades
sociais – decorrentes, em larga medida, de particularidades econômicas e
políticas – que determinam um modo, no mínimo diferente, do agir
humano.
Entretanto, também, devemos lembrar que a definição de
pós-moderno, ou melhor, a preocupação com esse discurso, é inerente a um
saber que não quer ser conservador, mas, ao mesmo tempo, deixa de ser
substancialmente crítico, na medida em que procura legitimar-se em uma
sociabilidade ao estilo do Estado de bem estar social (pois, mais
preocupado com o social), porém, com um toque do requinte liberal. No
fundo, o pós-moderno é hedonista e individualista e, quando opera à
crítica – aparentemente virulenta ao capitalismo – é só para manter a
sua posição de privilégio frente a uma sociedade ainda atrasada e
conservadora.
O pensamento pós-moderno é chique; ser pós-moderno é
ser chique. Isso pode não significar muito, mas, na essência, revela o
quanto de limitação há no pensamento pós-moderno. Toda essa consideração
é mais verdadeira ainda, se confrontarmos as teses pós-modernas com a
teoria marxista. O pós-moderno não pensa as estruturas de dominação
inerentes ao capitalismo e, junto com essas, uma maneira de superá-las.
A
partir dessa exposição, poderíamos dizer, com toda a certeza: Žižek não
é um autor pós-moderno. Muito pelo contrário, Žižek opera uma crítica –
essa sim, virulenta – ao capitalismo e a certo progressismo de pouco
diálogo com o materialismo e com a dialética. O autor esloveno não se
mantém no posto confortável do pensamento pós-moderno, esse mesmo que
assimila as crises e propõe soluções palatáveis para a “elite
intelectual” que lhe conforma. Podemos apenas aproximar Žižek do
pós-moderno, conforme digo no meu livro, pela retórica e pela utilização
da palavra envolta aos acontecimentos diários. Forçando ao máximo à
compreensão e a síntese, haveríamos de dizer que Žižek é pós-moderno na
forma (no processo), mas bem diferente do que seja o pós-moderno no
conteúdo (na substância).
Falar de Žižek enquanto um autor marxista
parece ser, sobremodo, mais interessante. Isso porque é pela tomada de
posição marxista que aparecerá algumas das contradições do pensamento de
Žižek. Na análise jurídica, o filósofo esloveno é partidário da posição
de Marx quando afirma que a igualdade formal acarreta a desigualdade
material. É pela igualdade na lei que o trabalhador poderá, em condições
formalmente iguais com os outros trabalhadores, vender sua força de
trabalho para o capitalista que, também em condições de igualdade
formal, deverá obter a mais valia. Esse processo de identificação da
forma jurídica com a forma mercantil é recorrente na teoria jurídica
pachukaniana, da qual Žižek, em certa medida se aproxima. Mas, partindo
dessa base marxista, transparece uma contradição na obra do autor
esloveno. É naturalmente quando a crítica ao Direito sai dos patamares
marxistas literais que a contradição, especialmente na análise jurídica,
aparece. A teoria marxista não reconhece outra possibilidade para o
Direito senão identificá-lo com a forma-mercadoria. Uma amplitude de
diálogos de Žižek com outros autores, que não os marxistas, torna-o
heteróclito demais para ser qualificado puramente como um autor
marxista. Então, em que medida é possível falar de Žižek, enquanto
marxista? Na exata medida que o nosso filósofo identifica a forma
jurídica à forma mercantil. Aparentemente, em nada mais. Não em um todo,
na sua obra. Não como filósofo, talvez. Isso ainda é um tema que me
incomoda muito, enquanto pesquisador, e dá para percebê-lo em meu livro:
definir um marcador teórico para Žižek.